Crónicas

A escola é uma coisa inacabada*

Só quem não conhece a realidade das escolas pode achar que reduzir o tempo de intervalo poderá ser benéfico

Os meses de agosto e setembro são sempre meses de sobressalto para quem dá aulas. Agosto, que é único mês em que se pode tirar férias, é, na verdade, um mês de incertezas. Para quem está a termo, o mês em que se descobrirá se haverá ou não emprego no próximo ano; para quem já está no quadro, altura em que se sabe como será o ano seguinte, se haverá ou não lugar na escola onde se esteve antes, se haverá ou não vaga na escola onde se gostaria de dar aulas ou se simplesmente se muda para uma escola-surpresa.

Ao longo da minha carreira de quase 20 anos de docência passei por seis escolas. Se por um lado a estabilidade numa escola é benéfica porque é possível desenvolver projetos e saber com o que se conta, por outro a mudança de escola também tem os seus benefícios, nomeadamente no combate à cristalização. A possibilidade de contactar com outras formas de organização e outras formas de trabalho são uma mais-valia numa profissão (que deve estar) em constante mutação.

Mas o mês de entrada numa nova escola sempre foi um mês difícil. No que me diz respeito, a timidez nunca facilitou o processo e precisei sempre de esforço consciente para me ambientar e conseguir começar a quebrar gelo, mesmo tendo a sorte de encontrar colegas inexcedíveis na forma generosa como me receberam.

Mas mesmo quando não há mudança de escola, setembro é sempre um mês de sobressalto, um mês de trabalho muito intenso, de incertezas e de esperança. Por um lado, a expetativa de conhecer novas turmas, de começar tudo de novo. De receber o horário e perceber que disciplinas ou unidades ficarão a nosso cargo. De reencontrar turmas que já conhecemos e com quem já se sabe por onde e como trabalhar. Ou como se tenciona experimentar outras abordagens, conteúdos e metodologias que possam funcionar melhor (a docência também é tentativa e erro). Por outro, o receio de não conseguir ter tudo pronto a tempo: a preparação de materiais e dossiês, as planificações de longo e médio prazo, de aulas, os projetos, as reuniões, os inquéritos, as reuniões, os diagnósticos, as reuniões, o plano anual de escola, as reuniões, os critérios de avaliação e as grelhas, as reuniões, o projeto docente, as reuniões …

Este ano, o recomeço será ainda mais exigente porque acontece numa nova realidade. Acredito que a apreensão dos meus e minhas colegas é proporcional à vontade de recomeçar, de receber as nossas crianças e adolescentes, para quem o começo – ou recomeço – é também tempo de esperança.

Julgo ser importantíssimo termos em conta as reflexões e recomendações das entidades creditadas e vejo, com alguma apreensão, algumas das medidas que se pretende implementar, pelo impacto que poderão ter nas nossas crianças e adolescentes.

Segundo os dados disponibilizados no documento divulgado pelo Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC), datado de agosto de 2020, a percentagem de crianças infetadas é bastante baixa (4% na União Europeia e Reino Unido). Refere também que nos casos de infeção, a necessidade de internamento e tratamento hospitalar é muito menor, comparativamente com as pessoas adultas. Contudo, a probabilidade de estarem infetadas e permanecerem assintomáticas é maior. Verifica-se também que quando sintomáticas, a capacidade de transmissão é semelhante à das pessoas adultas. Ressalva-se sempre a necessidade de mais estudos. Um dado significativo é o facto de se verificar uma baixa incidência de transmissão entre crianças; como tal, o ECDC considera que, com a implementação das medidas de higiene recomendadas e distanciamento físico, é pouco provável que as escolas se constituam espaços mais propícios à transmissão do vírus do que outros com igual densidade de ocupação. O documento salienta também que apesar de faltarem dados específicos sobre o efeito do fecho das escolas decorrente desta pandemia, existem estudos sobre os efeitos da suspensão das aulas na saúde e bem-estar das crianças e jovens em outros contextos. E os estudos apontam para um impacto negativo que afeta não só as aprendizagens, mas também a saúde (física e mental) e a segurança das crianças, particularmente as crianças inseridas em grupos socialmente mais vulneráveis e marginalizados.

Nesta equação sobre a reabertura das escolas, julgo que importa ter também em linha de conta as recomendações da Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP), da Sociedade de Infeciologia Pediátrica e do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, que lembram a importância do regresso às aulas presenciais, nomeadamente no que diz respeito ao 1.º ciclo (paradoxalmente, completamente ignorado no fim do ano letivo anterior). Sublinham os aspetos negativos registados durante o confinamento: dificuldades na concentração e realização das tarefas propostas, a falta de interação com colegas, para além da falta de acesso aos meios informáticos necessários ao contacto virtual, que penalizou especialmente as crianças de meios mais desfavorecidos. Chamam também a atenção para a falta de acompanhamento das crianças com necessidades educativas especiais: a falta de apoio traduziu-se numa regressão no desenvolvimento dessas crianças e num esforço exigido às famílias para além do que é razoável.

Por tudo o que foi enunciado, recomendam que, não descurando as medidas de segurança, deve assegurar-se o mais possível a normalidade da relação entre as crianças, e ressalvam a importância dos intervalos e do tempo para a brincadeira. Só quem não conhece a realidade das escolas pode achar que reduzir o tempo de intervalo poderá ser benéfico.

Na Região, o uso das máscaras será estendido ao 1.º ciclo. A este propósito, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a UNICEF recomendam o uso a partir dos seis anos, nos casos em que haja transmissão comunitária e em que o distanciamento físico de um metro não possa ser salvaguardado. E chama a atenção para o impacto que esta medida poderá ter ao nível da aprendizagem e do desenvolvimento psicossocial.

Da minha parte, fico particularmente apreensiva com a aplicação desta medida nomeadamente nas crianças que iniciam e consolidam a aprendizagem da leitura, para quem o facto de se esconder a expressão facial constitui um entrave significativo a uma aprendizagem de sucesso.

Votos de um bom ano letivo. Em particular, desejos de continuação de um excelente trabalho à Escola Básica de 2.º e 3.º Ciclos Dr. Eduardo Brazão de Castro. A minha «casa».

* Inspirado num título de Eimear McBride.

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