Crónicas

A Alegoria do Face

A “caverna social” está toda ela pejada de figuras que não distinguimos. Sombras que transportam ignorância, que espalham com o maior dos à-vontades

1. Disco: A maior parte das vezes gosto mais de Marylin Manson pelo “freakshow” que liberta do que propriamente pela música que faz. Este “We Are Chaos” está longe disso. É mesmo muito bom. Num ano como este, completamente anómalo, nada faz mais sentido do que o aparente caos proposto por Manson. Brian Warner continua inconformado com o que o rodeia e este disco prova isso mesmo:

“In the end we all end up in a garbage dump,

but I’ll still be here holding your hand”.

E mais nada.

2. Livro: não sou das pessoas que tem a melhor ideia de Paulo de Morais. Nunca lhe perdoarei o depoimento na Assembleia da República em que queria fazer prova de corrupção com artigos que tinha escrito. Neste livro, Morais faz uma resenha de casos e protagonistas para que o futuro disso não se esqueça. Num país onde todos temos a percepção de corrupção, é um livro imprescindível na mesa-de-cabeceira.

3. Platão é um dos maiores filósofos de todos os tempos. A sua actualidade é eterna e nunca, como agora, aquilo que disse fez tanto sentido.

A Alegoria da Caverna é uma história que consta do Livro VII de “A República”, que terá sido escrito em 517 a.C. A obra é a peça central de toda a filosofia de Platão, preocupada, principalmente, com o modo como as pessoas adquirem conhecimento, seja ele sobre a beleza, a justiça ou o bem. Na Alegoria da Caverna, o filósofo, recorre a uma muito bem conseguida metáfora, onde usa a ideia de prisioneiros acorrentados no escuro para explicar as dificuldades que estes terão de alcançar, e manter, um espírito justo e pleno de conhecimento.

Numa conversa com o seu discípulo Glauco, Sócrates pede-lhe que imagine pessoas a viver numa grande gruta, cuja saída fica no final de uma subida íngreme e difícil. A quase totalidade das pessoas são prisioneiros, acorrentados de frente para a parede posterior da caverna, e estão amarrados de maneira em que não se podem mover, nem tampouco virar a cabeça. Uma grande fogueira arde por detrás e tudo o que os prisioneiros podem ver são as projecções brincando na parede à sua frente. Outras figuras há que se movimentam na caverna entre os prisioneiros e o fogo. Só as suas sombras são visíveis. Mesmo as conversas que têm são ininteligíveis, uma vez que os ecos da caverna distorcem o que é dito.

Eventualmente, alguns prisioneiros, são arrastados para fora. Serão dolorosamente deslumbrados e atordoados pelo sol e pela beleza da lua e das estrelas. Sócrates descreve então as dificuldades que um prisioneiro pode ter para se adaptar à libertação. Quando vê que há objectos sólidos na caverna, não apenas sombras, fica confuso. O que viu se habituou a ver até ali era uma ilusão. A sua vida sombria era a realidade.

Quando se acostuma à luz, terá pena das pessoas na caverna, mas procurará ficar longe delas. Facilmente esquece o seu próprio passado. Os recém-chegados escolherão permanecer na luz, mas, segundo Sócrates, não o devem fazer. Porque para a verdadeira iluminação, para entender o que é bondade e justiça, devem descer de volta às trevas, juntar-se aos homens acorrentados à parede e compartilhar o seu conhecimento com eles.

A caverna representa o mundo, a vida que nos é revelada apenas pelo sentido da visão. A subida para fora da caverna é a viagem da alma ao inteligível, ao conhecimento.

Isto não vos lembra nada?

4. Ainda hoje vivemos acorrentados nos mitos que compramos. Socorramo-nos das redes sociais para fazermos uma viagem pela Alegoria da Caverna.

Quem dos que agora estão a ler este texto, e que são utilizadores de redes sociais, conseguem ver seres que conhecem aprisionados nas redes sociais?

Pessoas que estão agrilhoadas em frente a um computador, ou smartphone, onde são projectadas imagens que, muitas das vezes, são só “sombras”. No Facebook, por exemplo, o local onde vemos o que se passa na rede social dá pelo nome de parede (wall). É aí que são “projectadas” as informações a que acedemos. A maior parte dos que por lá andam não exerce o seu sentido crítico, seja por desconhecimento seja por pura crença. E a informação são só silhuetas em que acreditam que está contida a verdade, que são vistas como se fossem realidade.

A “caverna social” está toda ela pejada de figuras que não distinguimos. Sombras que transportam ignorância, que espalham com o maior dos à-vontades. Também as conversas são, muitas das vezes, ininteligíveis. Falamos de alhos e respondem-nos em bugalhos.

Casualmente há quem seja puxado para a luz, pois, também a rede social tem uma saída. Uma saída que permite cruzar informação e saber se aquilo que nos cai no colo, é verdade ou mentira. Muitas das vezes assume-se o título como sendo o todo, levando a que se absorva informação incompleta que não leva a lado nenhum.

A luz, a boa informação, a verdade, está tão disponível como a escuridão, a notícia falsa. Porque nunca viram a verdade, aceitam a mentira como realidade. Verdade que só atingiremos se exercermos sempre o nosso juízo crítico, se usarmos a capacidade de procurar toda a informação e, usando o que temos na cabeça, concluir.

Cabe-nos, aos que não têm o péssimo hábito de emprenhar pelos ouvidos, levar a luz a quem a não vê. Indicar o caminho da informação correcta. As redes sociais são a prova provada de que o código de exigência da grande maioria das pessoas é muito baixo. Usar todas as armas disponíveis no argumentário sem cair na conversa sem sentido, pois, como disse Mark Twain, “Nunca discutas com um idiota. Ele arrasta-te até ao nível dele, e depois vence-te pela experiência”.

5. Até há relativamente pouco tempo, a ignorância era coisa que não preocupava ninguém. Taxativamente considerava-se a ignorância como o oposto do conhecimento, como falta de informação. Epistemologicamente o foco estava concentrado no conhecimento e nos meios de o alcançar. Nos últimos tempos as coisas têm-se modificado e a tendência de ignorar a ignorância, mudou.

Revelou-se filosoficamente desafiador explicar exactamente o que é a ignorância e, mesmo que ela seja “ausência de conhecimento”, passou a ser merecedora de atenção numa ampla variedade de debates.

Qual a natureza da ignorância? Quais as suas tipologias? Qual o seu valor? São perguntas a que se procura responder. Será que saber um pouco de um assunto, desconhecendo o resto, faz de uma pessoa conhecedora, ou a tendência que terá de distorcer o pouco que sabe, de modo a se adaptar ao debate, continua a ser ignorância?

Recusar ouvir os argumentos dos outros, é prova de desconhecimento. Recorrer ao insulto, à insinuação, à comparação torpe e distorcida, o recorrer à mentira, tudo isto é demonstrativo de ignorância.

São inúmeros os estudos que comprovam que o conhecimento traz felicidade. A ignorância induz à raiva, ao mal dizer. Um ignorante com pretensões a ter conhecimento, não deixa do ser só porque lhe apetece. Será sempre ignorante, porque a informação e conhecimento que tem são insuficientes.

A maioria não saberá, mas já existe ciência para estudar este tema. Trata-se da agnotologia, cujo tema de estudo é a ignorância ou a dúvida que, muitas das vezes, é intencionalmente induzida ou mantida por governos, empresas influentes, grupos políticos, que estuda quem produz e quem é influenciado pelas “fake news”.

Quanto a mim, tenho cada vez menos pachorra para ignorantes. Num tempo em que o conhecimento e a informação estão à distância de um clique, só é ignorante quem quer. Com cuidado, porque a “informação” digital é quase imensurável e é obrigatório que aprendamos a escolher o que está certo e o que é errado, pois, o conhecimento é parco e a sabedoria curta.

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