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O complô das batas brancas

Com este nome ficou conhecida um episódio ocorrido na então União Soviética, em 1953 (pouco antes da morte de Estaline), em que que foi anunciado, com pompa e circunstância, um complô, ou conspiração, para assassinar o Grande Líder.

Os autores seriam médicos, na maioria de ascendência judaica, que, segundo as acusaçãoes, se preparavam para envenenar Estaline, a coberto da sua atividade profissional.

[Qualquer semelhança com envenenamentos mais recentes é puramente especulativa]

Em Março de 1953 Estaline morreu de morte natural (hemorragia cerebral), cerca de dois meses depois das bombásticas denúncias. Sorte para os médicos acusados que ainda estavam vivos, que ainda tiveram tempo para serem reabilitados.

O antisemitismo latente na sociedade russa foi aproveitado para a criação do espírito de histeria coletiva. Aviso para quem pensa que tal sentimento era exclusivo dos nazis...

Esta esta estória da História mostra como pode ser fácil jogar com preconceitos para atingir um objetivo. Concorreram neste caso dois sentimentos, ambos desprovidos de lógica: o antisemitismo e a aversão à classe médica, tida por privilegiada.

A recente (e esperemos que encerrada) novela da assistência médica nos lares de idosos teve leves parecenças com o clima criado com o complô das batas brancas, mas agora com a enorme vantagem da liberdade de expressão, inexistente na URSS de 1953 (situação que não mudou muito, mesmo depois do XX Congresso do PCUS de 1956).

Ninguem por cá foi preso ou executado, naturalmente, mas não faltaram julgamentos na praça pública, dos poderes públicos e dos médicos.

Casa sem pão, todos ralham e ninguém tem razão, diz o velho ditado. Calcula-se que existam cerca de 2.500 lares em Portgal, abrigando à volta de 90.000 idosos. O facto de terem uma atividade louvável não os iliba de nem sempre disporem das condições desejáveis de funcionamento. Basta lembrar as notícias que recorrentemente referem o encerramento de lares e casas de repouso, muito antes da pandemia. E é sempre invocado o argumento da falta de alternativas, como justificativo da sua existência naquelas condições.

A crise criada com a pandemia mais não fez que amplificar o conhecimento desta situação. Portugal, como todos os países europeus, tem um população envelhecida, e a tendência é para o agravamento. Paralelamente, os velhos são comummente considerados “improdutivos”, “parasitas”, “praga grisalha” e outros mimos do mesmo jaez. Quem o diz são os novos, que ao que parece nunca serão velhos, e se o forem não precisarão de Segurança Social, já que se recusam a participar nisso. Não estaremos cá para ver, mas é fácil prever...

Também há bons investimentos em instituições de topo de gama, mas são as exceções e não a regra. Os cuidados continuados são ainda uma miragem (calcula-se que faltem 7.000 camas) e restam os lares, para onde recolhem por vezes doentes entubados, algaliados, doentes mentais e utentes dependentes de cuidados elementares de higiene e alimentação, para os quais alguns lares não estão equipados e guarnecidos para fazer frente a tais necessidades.

A obrigatoriedade de distanciamento social é impossível em quartos com duas ou três camas, ou com as dificuldades de comportamento de quem já sofre de falta de discernimento.

Neste pano de fundo, temos a atuação dos profissionais de saúde, e de bombeiros, militares, farmacêuticos e outros, que se viram atirados para a linha da frente. Como em todas as batalhas, há heróis e cobardes, cumpridores e desertores.

Só que a nossa tendência atávica é generalizar. Se um médico, um militar, um bombeiro, falharem, a notícia é terem falhado os médicos, os militares ou os bombeiros.

No caso do médicos e enfermeiros, existe a particularidade da existência das Ordens. Estas devem agir dentro dos poderes que lhes são delegados pela Assembleia da República, para regular o exercício da profissão. E isto as distingue do conceito medieval das corporações, que regulavam todas as atividades profissionais, ou dos atuais sidicatos, que visam defender os seus associados nas relações laborais.

As Ordens neste campo têm uma responsabilidade e um prestígio que se têm mantido no tempo, tendo resistido e sobrevivido às tentativas de intrumentalização dos tempos do Estado Novo, e a criação de novas Ordens representa o reconhecimento da sua importância. Como também o surgimento de sindicatos nas profisões liberais foi um claro sinal do fim do corporativismo salazarista, separando as águas e reconhecendo a liberdade de reunião e associação.

Separação das águas que é difícil ou mesmo impossível num país não democrático. Mas não é, felizmente, o nosso caso.

Pelo que um novo “complô das batas brancas” é impensável. Tão impensável como deveria ser a atribuição das nossas culpas a terceiros.

Ou extravasar competências para tentar branquear maus comportamentos.

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