Crónicas

O lento caminho para o fim

Envelhecer nem sempre é um caminho calmo e sereno e, pelo caminho, perde-se muito

E mais depressa do que queríamos Agosto foi-se, tão rápido que, entre notícias de mortes em lares e dias quentes e de muito sol, Setembro está a chegar, não tardam as primeiras chuvas, nem aquele vento que obriga a vestir um casaco e a olhar pela janela para ver o Verão a desaparecer em tardes mais curtas.

O fim da praia e das férias como antes, no tempo em que duravam três meses e eram grandes, tão grandes que, quando acabavam, deixavam aquela certeza de que seria preciso esperar um ano inteiro para voltar a estar tão bronzeado, tão bonito, para acordar sem ouvir o despertador, sem precisar de correr entrada abaixo para apanhar o autocarro das sete e meia da manhã, o tal que passava carregado de gente.

O calor foi o mais normal que tivemos em todos estes meses que levamos a contar mortos e doentes, a passar de um surto para o outro, acantonados em máscaras e a perceber que no mundo organizado e bonito que tínhamos antes, afinal, existem lares onde vivem pessoas muito fragéis.

Lá trás, em Março, quando se repetia o slogan do vai ficar tudo bem não nos ocorreu que era uma ilusão. A começar por não ser verdade, não estava tudo bem antes, não ia ficar depois. As vidas dos mais velhos não é aquela que imaginamos, a avós simpáticos, que vão levar os netos à escola, das senhoras que fazem tricô e dos senhores a jogar às cartas nos jardins. Envelhecer nem sempre é um caminho calmo e sereno e, pelo caminho, perde-se muito.

Eu vejo isso nos olhos do meu pai, um homem forte que, aos poucos, perde a forças nas pernas, nos braços e, em alguns dias, desabafa o cansaço que é ser velho e estar só. Nesse caminho a morte levou-lhe as duas mulheres que amou, os pais, vários irmãos, amigos e vizinhos. E não deixo de lhe ver coragem e bravura de cada vez que se veste e sobe os metros de alcatrão que vão dar ao café. Vence a canseira da idade e volta a ser o homem que sempre foi.

Orgulhoso, ciente de si e isso é uma sorte aos 84 anos. Uma sorte que os velhinhos dos lares não têm. A minha tia Conceição, a quem os anos roubaram a lucidez, não teve essa oportunidade. Hoje é uma senhora perdida em memórias mais ou menos desconexas, que não conhece a casa onde viveu a vida toda. E chama pelas irmãs, pela mãe e revolta-se por entender como foi possível deixá-la, ali, abandonada. Nunca acredita que morreram, que é a última.

E, de cada vez que me reconhece, que me chama pelo nome, eu ganho o dia, a tarde que ali estou, eu e ela no sofá. Houve um tempo que puxava pelo passado, que procurava memórias antigas, agora está só distraída, envolta na ansiedade, não é fácil ser a última num lugar que é o mesmo e, ainda assim, tem outros vizinhos, outras pessoas e é complicado perceber que está na casa onde nasceu, cresceu, se fez adulta e caminhou até ser a velhinha de cabelo branco que passa os dias na paragem do autocarro.

E como ela há mais, muitos mais. Envelhecer rouba até a noção de quem somos.

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