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Crónicas

Há um quê de estranho

Não se percebe se está aberto, as mesas e cadeiras empilhadas a um canto e os tampos sem toalhas não ajudam, parece que estou numa casa em obras e que me fizeram o favor de servir o almoço. Dantes queixava-me que estava tudo cheio, agora sinto-me inquieta e bebo o café depressa, este novo normal é esquisito.

À porta do banco há fila, avisto primeiro as máscaras verdes e azuis, depois os cabelos grisalhos e lembro-me que é por causa das pensões que estão ali, muito perto uns dos outros. Mais à frente, uma rapariga bonita controla as entradas numa loja em saldos e, lá dentro, vagueiam algumas clientes, mas o negócio é uma sombra do que já foi.

O ambiente cosmopolita evaporou-se, somos apenas nós, os daqui, numa cidade com o movimento de um sábado à tarde. E eu gostava dos sábados à tarde, agora confunde-me, nem o meu optimismo consegue calar o desassossego que trago comigo desde o fim de Março, quando atravessava a cidade em trabalho.

Nessa altura, vivia-se nas redes sociais, nas videoconferências, no teletrabalho e na telescola. Foi quando um polícia me parou para dar o sermão do estado emergência. Eu tinha ido levar os medicamentos ao meu pai, mas estavámos todos nervosos e todos tínhamos medo de ficar doentes. Depois veio o sol, logo a seguir abriram as praias, os restaurantes, as lojas e podemos cortar o cabelo ao fim de dois meses.

Mas viemos dar a esta vida estranha, onde é impossível estar sentado numa esplanada ou estendido na praia sem pensar, nem mesmo quando se tenta. As cadeiras e mesas arrumadas a um canto ou a menina na porta da loja a apontar para o álcool gel não deixam, isto não está normal, mesmo que não se veja as notícias, nem se preste atenção aos números de mortos e doentes.

Lembro-me que quando o ano começou tinha muitos planos, coisas simples, triviais como inscrever-me em aulas de esgrima e fazer uma prova de natação de águas abertas, até escrevi sobre isso num daqueles textos que se fazem nos últimos dias do ano, quando entramos em sintonia com milhões de pessoas mundo fora naquela crença de o futuro será melhor. Não foi, virou-se tudo ao contrário e até os gestos mais banais são pensados.

E assim até sonhar, aquele sonhar que dá esperança e nos envia para um lugar melhor, até isso não está livre da angústia destes dias.

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