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Queimar novamente Vieira em estátua e os novos fundamentalismos

Vieira era, ele mesmo, o resultado brilhante de um processo de miscigenação, pois tinha na sua ascendência uma avó negra

Os recentes atos de vandalismos realizados contra o conjunto iconográfico que constitui o lugar de memória de Vieira erigido em Lisboa em 2017 impõe-nos o dever de intervir para ajudar a lançar luz crítica sobre o legado desta figura maior das nossas letras sobre quem José Saramago escreveu, confessando a sua admiração pela sua prosa que tomou como inspiradora da sua escrita: “Padre António Vieira, porque a língua portuguesa nunca foi mais bela que quando ele a escreveu.” (Cadernos de Lanzarote IV, p. 177).

Temos de considerar as reações a Vieira e a este seu lugar de memória em dois grandes planos de crítica: 1) as críticas às opções estéticas e às escolhas iconográficas que estiveram na base da construção da estátua de Vieira em frente da Igreja de São Roque em Lisboa; 2) as acusações de racismo, esclavagismo e colonialismo à pessoa e ao pensamento de Vieira.

Quanto ao primeiro plano, cumpre-me lembrar que era visto com grande estranheza o facto de não haver em Lisboa uma estátua dedicada àquele que foi considerado por Fernando Pessoa como o “Imperador da Língua Portuguesa”. Esta lacuna acabou por ser colmatada com a construção da representação escultural que tem sido alvo de contestação. A escolha iconográfica e os motivos estéticos poderiam ter sido outros e mais consonantes as sensibilidades artísticas contemporâneas; e, acima de tudo, o perfil de Vieira representado poderia valorizar mais alguns aspetos da vida e obra pelos quais também se destacou no plano literário e da crítica social e política. A escolha desta obra escultórica em detrimento de outras que estiveram em apreço, decorrente de um concurso público para o efeito, pode e deve ser objeto de discussão. As discussões críticas serenas e ponderadas são saudáveis e devem contribuir para o esclarecimento e aprofundamento das questões em causa.

Outro plano crítico é o do aproveitamento do desacordo sobre o perfil desta representação escultórica para fazer de Vieira um símbolo do racismo e da escravatura na história do nosso país, fazendo a sua condenação sumária em efígie na praça pública, sem ter em conta o conhecimento completo da sua obra que chegou até nós e do contexto histórico, cultural e mental que era o seu no século XVII. Torna-se importante ler a obra toda de Vieira e compreender o seu pensamento sobre a escravatura, a sua crítica social às condições laborais dos escravos e o seu entendimento crítico dos processos de legitimação da escravatura. Vieira foi um crítico corajoso, como poucos no seu século, ao mesmo tempo com radicalismo evangélico na defesa dos oprimidos pelos senhores da economia colonial, mas também com realismo político em relação às práticas esclavagistas vigentes em todo o sistema colonial europeu e global, pois teve de procurar equilíbrios nada fáceis entre o seu ofício de missionário e o de conselheiro/embaixador do Rei de Portugal empenhado na causa da Restauração da Independência.

Vieira deixou-nos nos sermões, na epistolografia e nos textos proféticos um pensamento ousadamente crítico das desigualdades e dos sistemas de opressão, partindo do axioma cristão da igualdade de todos os seres humanos enquanto filhos de Deus. O património intelectual que nos legou é marcado por uma fortíssima crítica social, tendo por horizonte o ideal evangélico da construção do “homem novo” e da “sociedade nova”, mais fraterna e mais justa.

Entre os muitos alvos da sua crítica, podemos aqui lembrar a sua posição frente aos que alegavam a cor da pele para legitimar a escravatura. Vieira refutava claramente esse argumento, diríamos hoje de “supremacia branca”, advogando que a escravatura se fazia em razão da força e não se poderia legitimar pela consideração da natureza, ou seja, em nome da proveniência étnica ou da pertença rácica dos que eram escravizados.

Para rebater os que tomavam a cor como fator de superioridade, Vieira fez, numa das suas intervenções mais contundentes sobre esta problemática, uma apreciação muito elogiosa dos homens de cor negra, num dos sermões que pregou contra os excessos dos senhores da indústria açucareira no tratamento da população escrava, especialmente da proveniente do continente africano. Vieira não só afirmou, num dos seus sermões do Rosário, que “cada um é da cor do seu coração” (Obra Completa, Tomo II, Volume IX, 177), afrontando qualquer desqualificação antropológica por motivo da cor da pele, como chegou mesmo a exaltar, corajosamente, no Sermão XX do Rosário, a qualidade da cor preta. Com base na simbologia das cores e nas qualidades associadas, Vieira explicava que a cor branca disgrega a luz, metáfora da verdade e do conhecimento, e a cor preta congrega e absorve melhor a mesma luz. Afirmou ainda, explorando o plano simbólico, que a cor preta une a vista tanto quanto a cor branca a dispersa e a desune. Procurava assim desqualificar a arrogância dos senhores brancos que oprimiam, com laivos de superioridade, os escravos negros.

Este e outros textos que Vieira nos legou são expressão da sua crítica social aos excessos do tratamento sub-humano dos donos dos escravos e da sua apreciação da comunidade de cor preta. O pensamento social de Vieira estava, pois, longe de ser enfermado de qualquer preconceito racista, antes procurava desconstruir criticamente os que já começavam a recorrer ao argumento da cor para constituir motivo de opressão do homem pelo homem. Para além do mais, não podemos esquecer que Vieira era, ele mesmo, o resultado brilhante de um processo de miscigenação, pois tinha na sua ascendência uma avó negra.

Vieira esteve, de facto, à frente do seu tempo em algumas das suas apreciações críticas e dos seus projetos de reforma social. Por isso, foi incompreendido, condenado pela Inquisição por ter defendido o regresso dos Judeus, entre outras ousadias, e até queimado em efígie pelos estudantes de Coimbra, incitados pelos sectores inquisitoriais nos inícios da década de 80 do século XVII. Parece que no momento presente, apesar do reconhecimento e do estudo que a sua obra tem merecido a nível internacional, Vieira continua a ser objeto de incompreensão e de acusação, querendo alguns voltar a queimá-lo em estátua por razões que resultam, como no passado, de ignorância e fundamentalismo. A leitura completa e atenta da sua obra, que agora está acessível a todos, pode ser a melhor forma de entender Vieira e a evolução do seu pensamento no seu sitz im leben (contexto vital) considerando a sua complexidade e diversidade. Só pelo conhecimento crítico é possível ultrapassar os juízos primários e apressados que são sementes de antigos e novos radicalismos fundamentalistas e dos seus decorrentes vandalismos.

* Este artigo constitui uma versão reformulada e mais sintética de um texto mais extenso publicado no Ponto SJ.

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