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Estará esta Pandemia condenada a ser um Pandemónio?

A Covid-19 testa a resiliência das mais variadas instituições e lideranças, países e populações e, em última análise, de cada um de nós. É um desafio pessoal, até mesmo espiritual, qualquer que seja a latitude desse atributo. Mas não só. Questiona a capacidade de sobreviver como espécie. Coloca a Ciência sob a pressão, respondendo a um conjunto de questões emergentes: Como tratar a doença? Qual é a imunidade resultante? Quando uma vacina eficaz? Quantos assintomáticos estão infetados? Como evoluirão a vagas?

Perante a mira dos média, perante a caneta dos políticos, senão mesmo perante o ceticismo de certos cultos, a Ciência está a responder como o faz habitualmente: foi buscar as suas três ferramentas habituais. Primeiro o Contraditório, na qual questiona sucessivamente toda e cada peça de informação, esculpindo as suas arestas, senão mesmo quebrando o cerne da mesma (veja-se o percurso atribulado da já famosa hidroxicloroquina). Depois vem a Lógica, na qual analisa a realidade com métrica, com sistematização (vejam-se os inúmeros sites com a casuística epidemiológica comparativa dos diferentes países). Finalmente a Experimentação, na qual testa a validade dos diferentes conhecimentos (como seja a eficácia comparativa de uma ou outra vacina ou medicamento).

Esta resposta pode ser complexa. Lenta. Divergente. Por vezes não nos leva aonde esperamos. Lembremo-nos do infindável caminho para a vacina do HIV-SIDA ou da então promissora tecnologia nuclear...

Recordo a propósito um livro que li muito interessante, “Arrowsmith”, fruto da mente criativa de Sinclair Lewis, o primeiro Nobel americano. Retive-o na memória, não só pela excelente reflexão do que é ser médico e é a ciência médica, mas também pela oportunidade de ter visitado a casa-museu de Lewis em Minneapolis, cidade onde trabalhei nessa altura.

O livro conta a história de Martin Arrowsmith, um brilhante jovem médico de saúde pública nos anos vinte, ainda antes da grande depressão. No livro, Arrowsmith vem a descobrir um tratamento para a peste, o “fago”, na verdade um vírus que destrói as bactérias da peste.

Ao longo da vida ele é influenciado por três colegas que o marcam. Sondelius, o médico voluntarista que quer ajudar todos. Pickerbaugh, um médico que valoriza o poder, o dinheiro, e quer divulgar na sociedade a sua visão de higienização. Gottlieb, cientista e apaixonado pela investigação séria e metódica.

É com Sondelius que embarca na aventura da sua vida, quando vai para a ilha de St. Hubert nas Caraíbas, que está infestada de peste bubónica. O objetivo era testar o seu tratamento em metade da população, comparar com a restante metade, aferindo a sua eficácia. A vida trocou-lhe as pernas quando, na confusão do surto, o amigo Sondelius e também a sua mulher, Leora, morrem infectados. Em desespero e revolta, Arrowsmith injecta toda a população com o fago. Alguns morrem, mas o surto lentamente passa. O médico Arrowsmith é aclamado herói na América, mas, quando questionado por Gottlieb, é incapaz de provar se o tratamento tratou a peste ou, simplesmente, ela desvaneceu-se com o tempo, como acontece com todas, sendo assim o fago inútil.

Este livro de 1925 previu muitos dos dilemas da ciência médica. Os interesses comerciais de tratamentos e, em vez, a verdade científica. A saciedade do consumo de cuidados de saúde e, em vez, a racionalidade da gestão pública.

Por esta obra recebeu o prémio Pulitzer, mas Lewis recusou-o pois achou que as regras Pulitzer coartavam a liberdade de pensamento ao valorarem “a atmosfera saudável da vida americana e o elevado padrão de cortesia e virilidade americanas”.

Este é o dilema da ciência médica com a Covid: ceder ao voluntarismo de Sondelius (e morrer), ser oportunista como Pickerbaugh, ou responder à pergunta da eficácia metódica de Gottlieb? O tempo trará a resposta. E que esta seja tomada conscientemente pela humanidade e não num concílio de demónios (pandemónio)...

Como escreve o Cardeal Tolentino Mendonça, “Porque a vida é um dom que se recebe, doando-se”, acrescentaria eu, com paixão e também inteligência.

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