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Ser cristão significa ser peregrino

Esta pandemia lembra-nos que não há diferenças nem fronteiras entre aqueles que sofrem

A proximidade dos acontecimentos difíceis e dolorosos vividos na Europa no decurso dos séculos XX e XXI chama-nos, a todos, o reconhecimento de que a nossa história comum e antes de mais uma experiência de fragilidade. Nada é um dado adquirido. Nem a paz, nem a liberdade, nem a solidariedade, nem a tolerância, nem a democracia, nem mesmo a adesão à fé. Para que durem, é necessário um esforço constantemente renovado. A consciência de que tudo o que as gerações conseguiram à custa de tantas dificuldades pode ser perdido deveria impedir-nos, por um lado, de tratar a nossa cultura com indiferença, e por outro, de adoptar atitudes triunfalistas.

Tal consciência da nossa fragilidade comum será particularmente necessária para proceder à releitura da nossa história europeia. Durante séculos a Europa esteve dividida entre nações rivais.

As guerras sucederam-se umas após outras no nosso continente. Retrospectivamente, a partir do momento actual, estas guerras apresentavam-se-nos cada vez mais claramente como guerras civis. Cada povo precisará portanto de muita humildade para chegar a esse reconhecimento explícito. Será necessário proceder a uma dupla releitura histórica: a releitura da história individual de cada nação e a releitura da história dessa nação na Europa.

Nesta procura da história comum a todos os países membros da União Europeia, há um enraizamento da história do cristianismo, tanto na história do seu desenvolvimento como na das suas roturas.

Para nós, cidadãos que nos reconhecemos católicos actualmente, qualquer releitura da nossa história terá necessariamente uma dimensão económica. Devemos realizar nós próprios aquilo a que o Papa João Paulo II chamava “a purificação da memória”. Sabemos que não podemos apresentar a nossa oferta ao altar com uma consciência tranquila enquanto tivermos conhecimento de que um dos nossos irmãos tem alguma coisa contra nós. É esta portanto a primeira contribuição que podemos dar, como católicos, ao futuro da União Europeia: trabalhar tranquilamente para uma compreensão mútua da história que é tanto conflitual como comum.

No contexto da troca de dons, culturais e espirituais, a segunda contribuição que podemos trazer é fazer eco e tornar nosso o apelo de João Paulo II para termos em conta a nossa dívida em relação aos países libertados do sistema soviético. Na encíclica (Centesimus annus) escreve: “a ajuda dos outros países, em especial da Europa, que fizeram parte da mesma história e têm responsabilidades daí decorrentes, corresponde a uma dívida de justiça. Mas corresponde também ao interesse e ao bem geral da Europa, pois esta não poderá viver em paz se os conflitos de natureza diversa que surgem na sequência do passado se tornarem mais agudos devido a uma situação de desordem económica, insatisfação espiritual e de desespero”.

Concretamente, hoje em dia, o projecto da União Europeia tem necessidade de ser revificado segundo o espírito que presidiu à sua origem em 1950, e que permitiu a experiência de 1989. Na base de uma reflexão sobre estes dois momentos chave da constituição europeia, devemos colocar a seguinte questão: Qual é hoje a vocação da União Europeia? A tarefa desta redefinição não diz respeito somente a alguns responsáveis, ela diz respeito a todos os cidadãos, a todas as instituições e a todas as associações dos nossos diferentes países. É fundamental ultrapassar o afastamento que se estabeleceu entre as elites e o conjunto dos cidadãos europeus. Como despertar o entusiasmo dos nossos diferentes povos para a causa europeia e a ideia de fraternidade entre todos, eis um grande desafio que nos é hoje colocado.

Estas questões dizem respeito ao conjunto de cidadãos da União. Os católicos não têm soluções tipo “chave na mão” para solucionar estes desafios. Mas reconhecem-se herdeiros de uma tradição antiga, que marcou particularmente o continente europeu. A este título, os católicos europeus, conscientes de serem cidadãos de pleno direito, sabem que têm a responsabilidade de manter viva essa tradição que se desdobra em vários registos. Têm de dar respostas, com outros cidadãos às mesmas questões que toda a gente. Mas podem procurar fazê-lo de forma original, a partir dos seus próprios recursos espirituais. O facto de a União Europeia ser, uma parte importante da sua história, da sua cultura, da sua espiritualidade, herdeira do cristianismo não confere nenhum privilégio aos cidadãos de confissão cristã. Mas isso não lhes tira nenhum direito de participar na construção da Europa do futuro. Tanto a partir da longa memória da Igreja como da sua experiência actual.

Por outras palavras, a fé cristã, longe de nos convidar a desprezar as realidades da vida comum, obriga-nos a nela nos empenharmos tão honesta e profundamente quanto possível. Todo o discípulo de Cristo é convidado a tornar-se seguidor dos seus irmãos e irmãs em humanidade, a colocar todos os seus talentos ao serviço do bem comum da cidade onde vive. A este respeito, a parábola do Bom Samaritano, assim como a do Juízo Final, são claras: é colocando-se ao serviço da humanidade que sofre que daremos a prova de que somos verdadeiramente em Cristo. E a este propósito citemos o Papa Francisco: “Agora, enquanto pensamos numa recuperação lenta e fadigosa da pandemia, é precisamente este perigo que se insinua: esquecer quem ficou para trás. O risco é que nos atinja um vírus ainda pior: o da indiferença egoísta. Transmite-se a partir da ideia de que a vida melhora se vai melhor para mim, que tudo correrá bem se correr bem para mim. Começando daqui, chega-se a seleccionar as pessoas, a descartar os pobres, a imolar no altar do progresso quem fica para trás. Esta pandemia, porém lembra-nos que não há diferenças nem fronteiras entre aqueles que sofrem. Somos todos frágeis, todos iguais, todos preciosos. Oxalá mexa connosco dentro do que está a acontecer: É tempo de remover as desigualdades, sanar as injustiças que mina pela raiz a saúde de toda a humanidade inteira!... Isto não é ideologia; é Cristianismo.”

Não é preciso dizer mais nada porque ser cristão é ser peregrino...

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