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Crónicas

O medo

A minha mãe e as minhas tias tentaram acalmar o medo, que o apocalipse era coisa para daí a muitos, muitos anos e, quando chegasse, iria libertar-nos a todos

A ideia do fim do mundo perseguiu-me pela infância e começou cedo, ainda na igreja, quando ouvi pela primeira vez a descrição do apocalipse segundo S. João. A história impressiona e eu, nos meus sete ou oito anos, levei semanas a tirar da cabeça as imagens do mundo a ser devorado por forças poderosas, a separar os justos dos outros numa purga assustadora.

A minha mãe e as minhas tias tentaram acalmar o medo, que o apocalipse era coisa para daí a muitos, muitos anos e, quando chegasse, iria libertar-nos a todos. Os bons subiriam ao céu, os outros seriam esmagados e, das cinzas, nasceria uma ordem nova, viveríamos na mais absoluta felicidade. Ou melhor, os escolhidos viveriam que, até ao dia do juízo final, ninguém estaria seguro.

Pelo menos eu não me sentia segura, que não era a criança mais dócil, tinha o hábito de responder e desafiar a autoridade. E não me encaixava na cabeça aquela história, não via a necessidade de destruir o que me parecia estar no lugar certo. O sol, as estrelas, o mar e a terra, a nossa casa encavalitada na curva, as casas dos vizinhos, as estradas e a vida que tínhamos. A minha mãe queixava-se muito, toda a gente se queixava muito, mas ninguém parecia disposto a trocar o que tinha pela felicidade mais pura e absoluta.

A cada notícia, a cada ameaça fazia-se um levante e ninguém se lembrava do lado bom do apocalipse da Bíblia. Houve o mês em que só se falou da queda do SkyLab – o tal que toda a gente achou que lhe ia cair em cima da cabeça -; depois veio o medo da guerra nuclear entre russos e americanos, da qual escapariam as baratas e pouco mais. Quando entrei na adolescência, chegaram as notícias alarmantes da SIDA, da nova peste que matava em seis meses.

Ao entrar na década de 1990, apareceram as imagens das catástrofes ambientais do leste europeu e da guerra em directo no Golfo Pérsico, quando se pensou que o conflito haveria de chegar a todo o lado com os ataques de Saddam a Israel. E tivemos todos medo, muito medo, um medo parecido com este que se vive agora, com esta doença nova, que passa de país para a país, que há-de chegar, só não sabemos quando.

A sensação é semelhante a perder o mundo em que vivemos, a rotina de que nos queixamos tanto, a saúde, a integridade física e a perder para o que nem sabemos bem o que é a não ser pelo que passa na televisão, de pessoas de máscara e os números que mudam todas as semanas, que falam de mortos e milhares de infectados. E pensar nisso tudo dá medo, não há como evitar, às vezes nem se consegue ouvir as recomendações mais simples como lavar as mãos.

A ideia do desconhecido paralisa, é um salto no escuro, mas, quando é assim, talvez sirvam os conselhos das minhas tias e da minha mãe que, todas tardes se sentavam para bordar, e me diziam que o fim do mundo seria coisa para daí a muitos anos, mas não fazia mal estar preparado.

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