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O Medo

Vivemos tempos excepcionais. E tempos excepcionais exigem quase obrigatoriamente medidas excepcionais. Hoje, provavelmente mais do que nunca nas nossas vidas, as acções individuais de cada um de nós podem influenciar indubitavelmente a nossa vida em comunidade. Para muitos de nós esse esforço comunitário nunca tinha sido exigido. Hoje em dia pode ser decisivo.

O confinamento e o isolamento sociais são importantes numa determinada fase da pandemia como forma de evitar um crescimento exponencial de casos que sejam insustentáveis para qualquer sistema nacional de saúde, seja de que país for. Mas nunca se poderão prolongar indefinidamente no tempo, promovendo o medo de se sair de casa. Nenhuma sociedade funcionará com as pessoas encerradas ad eternum em casa, mas sobretudo nenhuma sociedade se consegue suster com base no medo. O medo é opressor. O medo é opressivo. O medo gera a suspeita e a vigilância permanente dos outros. O medo gera a denúncia. E nenhuma sociedade conseguirá ser saudável quando os seus membros se tornam polícias uns dos outros.

O estado de emergência é uma resposta a uma situação grave, perigosa, a um momento crítico de vivência em sociedade, mas continuando a garantia da democracia no país. Os cidadãos não se podem escudar na emergência para achar que os direitos e deveres deixaram de fazer sentido, seja para si como em relação aos outros. No outro dia pessoas manifestaram-se contra o facto de outros cidadãos irem ficar confinados num hotel perto das suas residências (atenção, confinados num hotel donde não poderão sair ou ter contactos com o exterior e vigiados pelas autoridades policiais e de saúde). E esses manifestantes saíram de suas casas, em grupo, abandonando o seu isolamento, muitas sem qualquer protecção individual. Por vezes somos tão criminosos como aqueles que acusamos.

Também os jornalistas estarão a passar momentos complicados, não apenas pela situação económica das empresas para as quais trabalham, mas igualmente pelo assunto monotemático com que lidam diariamente. Mas também para eles o estado de emergência não lhes deve tirar o rigor e o profissionalismo que a sua profissão exige, para mais nos tempos actuais em que a informação rigorosa e verdadeira pode ser decisiva nos comportamentos em comunidade. No outro dia, numa das conferências diárias do IASaúde, uma pergunta de um jornalista baseava-se num comentário que ele tinha lido numa caixa de comentários de uma rede social naquele exacto momento, ou seja, sem qualquer verificação de fontes ou factos apenas com a intenção de provocar ruído. Não são tempos para isto.

Não podemos deixar que o medo nos tolde a razão. Uma sociedade amedrontada é uma sociedade que nunca vingará. As sociedades com medo levam sempre a um trágico desfecho, seja social, económico ou político.

Miguel Carvalho

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