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'Última Hora' é uma peça sobre a crise jornalística para rir e reflectir

Foto Shutterstock
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'Última hora', de Rui Cardoso Martins, é uma comédia em três actos sobre a crise no jornalismo e, por extensão, na democracia e na liberdade, uma peça para rir e reflectir, que se estreia na quinta-feira, no D. Maria.

O mais recente livro de Rui Cardoso Martins, editado pela Tinta-da-China, com chegada às livrarias no dia 9, nasceu de uma encomenda do diretor do Teatro Nacional D. Maria II (TNDM), Tiago Rodrigues, que, em 2017, convidou o autor para escrever uma peça original.

"Perguntou-me se queria a Sala Estúdio ou a Sala Garrett e eu disse que, se é para aceitar, vamos para a Garrett... e depois comecei a roer as unhas", contou o escritor e jornalista em entrevista à Lusa.

Rui Cardoso Martins já conhecia bem Tiago Rodrigues, até por ser filho do jornalista Rogério Rodrigues, que foi um dos seus "mestres" quando foi estagiário na fundação do Público.

"Mais tarde, até escrevi uma pecinha muito curta sobre dois desgraçados que ganham o Euromilhões e nunca mais têm descanso, e o Tiago encenou-a no espetáculo 'Urgências', no Maria Matos, muito antes de ir para o TDNM fazer um trabalho de mérito e de prestígio mundial. Olhámos um para o outro e eu disse que tinha de ser uma comédia", recordou à Lusa.

"Última Hora: Peça em três actos" passa-se na redação de um jornal com aquele nome -- "Última Hora" -, que vive a grave crise que vivem muitos jornais hoje em dia, com a ameaça do seu fecho e dos despedimentos, mas também da Internet e das partilhas de conteúdos grátis nas redes sociais, das manipulações políticas e empresariais e das 'fake news'.

Mas Rui Cardoso Martins chama a atenção para o facto de a peça não ser uma lista de assuntos jornalísticos. Na verdade, é "uma comédia e drama muito humano num quadro terrível: há um jornal que pode (ou que vai...) fechar, e as pessoas que o fazem tentam sobreviver".

Ao escrever sobre este tema, o autor confessa estar à espera de "um grande contra-ataque do verdadeiro jornalismo (nalguns pontos do mundo já começou), em que as plataformas digitais, que são autênticos ladrões, corsários piratas da informação dos outros, comecem a pagar a sério as partilhas de textos e reportagens".

"Porque nos últimos anos uns trabalham, outros ficam milionários e as pessoas acham que podem ter tudo à borla. Um dia acordam e já não há verdade, só mentira e manipulação", criticou.

Escrever esta peça foi para Rui Cardoso Martins um trabalho "duro, duro, duro, como diz um patife na peça".

Para desenvolver este projeto, foi importante ter ganhado uma bolsa com residência literária em Berlim, patrocinada pela Embaixada Portuguesa na Alemanha, que lhe permitiu pensar e focar-se no assunto, "já que o jornalismo e a crise no jornalismo é um tema que abrange todo o mundo (o jornalismo fala do mundo), e se o jornalismo está em crise, a democracia e a liberdade ficam em crise".

No entanto, decidiu fazer uma comédia, porque acredita que "o humor é aprofundar, não é aligeirar", e recorda à Lusa as palavras de Aristóteles, que dizia que "tragédia e comédia escrevem-se com as mesmas letras do alfabeto".

"Espero que as pessoas se riam, mas também que se comovam à vontade, porque a vida das pessoas que fazem os jornais não é 'pera doce'. E não me importo que pensem um bocadinho sobre o que está mal. Na verdade, todos os dias, desde há séculos, nascem e morrem jornais. Mas a imprensa de qualidade (e com bom gosto, que é uma coisa que existe, como dizia o Vicente Jorge Silva, outro mestre), o amor à verdade, não pode morrer", sublinhou.

A inspiração para esta história veio de tudo o que lhe acontece, ou que gostava que lhe acontecesse, mas também das coisas de que se arrepende, e muitos dos seus amigos e muitos dos "figurões" que conheceu "têm qualquer coisa lá dentro".

No entanto, ressalva que este jornal, da peça, é fictício e a história central é ficção, e "a linguagem é teatral e elaborada, há apenas um falso realismo e coloquialismo".

Além de abordar um tema que lhe é caro e que é um problema atualíssimo, a escrita desta peça teve um outro objetivo, "mais pessoal" ainda, que foi o de homenagear o pai.

"O meu pai, Leonel Cardoso Martins, a quem dedico o livro, sempre me apoiou e até ajudou a esclarecer dúvidas nos meus artigos e romances. Infelizmente, já não verá a peça, pois morreu no início de Agosto".

Apesar de se debruçar sobre a atual crise do jornalismo, Rui Cardoso Martins nega que haja algum saudosismo do "jornalismo de antigamente" subjacente ao texto, pois está consciente de que "dantes não era tudo bom, nem pouco mais ou menos", e muitos desses problemas são também abordados na peça.

"Havia outro espírito mais veloz na vivência, nas noitadas, nos disparates, mas se há coisa que a peça mostra é que também hoje nascem grandes jornalistas (desde os estágios) que deviam ter a sua oportunidade num pântano muito mais espesso. A peça é uma amálgama cronológica de vários tempos mentais, de vários avanços tecnológicos e de várias opções éticas", explica o autor à Lusa.

Pessoalmente, confessa que a crise no jornalismo o perturba, mas assume-se essencialmente como observador, que quer ver até onde isto vai chegar.

"A crise está em marcha e não sei como vai parar. Estou aqui para a observar, assim tenha saúde. Custa-me muito, quando vou aos tribunais (mantenho a crónica 'Levante-se o Réu' aos domingos na Notícias Magazine) que quando hoje mostro um cartão de jornalista para aprofundar uma informação, algumas daquelas pessoas fiquem logo assustadas, pensando que os jornalistas só servem para dar cabo da vida aos cidadãos. A tabloidização dos jornais e televisões é triste", lamentou.

Tal como o jornalismo, também o teatro é, para o escritor, umas das garantias da liberdade e da democracia, e também este enfrenta agora uma crise, de teor diferente.

Por isso, sente uma satisfação especial em poder desenvolver este género literário, vê-lo subir ao palco e contribuir para manter vivo o teatro.

"Quem trabalha em teatro tem um gigantesco desafio pela frente, por causa desta doença terrível que nos fecha em casa e dentro dos nossos medos. Por isso é uma alegria estrear uma comédia no Dona Maria II", confessou.

Quanto a trabalhos futuros, Rui Cardoso Martins está a desenvolver vários projetos em cinema, televisão e um romance, "este a andar muito devagar, coitadito".

"Última Hora" vai estar em cena até dia 15 de novembro, tem encenação de Gonçalo Amorim e conta com Maria Rueff e Miguel Guilherme no elenco.

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