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Novo normal

A gestão e comunicação dos números têm servido de evidência

Afastando as ingénuas, incompetentes, negligentes, trágicas ou mesmo humorísticas tiradas que foram povoando os noticiários ao longo dos últimos meses, onde se incluem, a título de exemplo, ministra da agricultura a ver oportunidade de sonho para a internacionalização do sector ou a proposta de injecção directa de lixívia como depurador absoluto de vírus, a evolução da comunicação, na pandemia é demonstração do longe em que estamos, ainda, de entender e saber o que era ,afinal, o normal em que vivíamos e como será o tão desejado “novo normal”.

A comunicação foi sempre, como não poderia deixar de ser, baseada em números, contabilidade pontual ou evolutiva, nem sempre clara e objectiva por necessidade de ajustamentos metodológicos, disponibilidade, correcção, normalização e validação de dados. Decorridos mais de 6 meses de números e mantendo-se a contabilidade viva por via da expansão assíncrona da pandemia, vemos números a crescer ou decrescer em função da geografia ou da capacidade de gerir a situação em cada contexto. O entendimento imediato do cidadão comum é que nas Américas se estará no auge, enquanto na Índia e África ainda se espera um crescimento significativo dos números disponíveis. Na Europa, um ligeiro aumento dos números no período pós-achatamento, a que os sistemas de saúde, entretanto melhor apetrechados materialmente e em conhecimento, parecem dar conta do recado. Os números sugerem a entrada numa nova fase, de transição, em que se terá que gerir a situação até que a ansiada vacina nos permita abrir a porta para o “novo normal”.

Esta será a leitura mais imediata do que vai pelo mundo nestes dias, com base na comunicação geral mas outras questões podem igualmente ser colocadas, em particular sobre a percepção, entendimento e usos dos mesmos números, da qualidade e da informação associada a esses valores e o que isso poderá significar no modo de gestão da pandemia e do que isso implica no devir do “novo normal”. Os números tocam mais do que a saúde e economia. A gestão e comunicação dos números têm servido de evidência e suporte à tomada de medidas excepcionais, algumas delas em âmbitos de importância vital para a humanidade, como a liberdade individual, a responsabilidade social e outros valores universais.

Com base nos números, a restrição de direitos tão básicos em democracia como a liberdade de movimentos, foi aceite sem grande resistência, justificada, e muito bem, pelo interesse comum. Factores decisivos dessa determinação e aceitação são a insegurança, incerteza e o medo imposto pela factualidade dos números. No entanto, e passada a primeira fase, o conhecimento e interpretação dos factos (e dos seus números) começa a revelar a necessidade de se procurar encontrar os limites do que se possa aceitar como o limiar de segurança a partir do qual a liberdade individual e os direitos universais deixem de estar condicionados. Essa tomada de consciência e consequente decisão está limitada pela comunicação, pelos números, pelo que induzem relativamente à segurança, sem que alguém tenha querido esclarecer qual o valor (número) a partir do qual a segurança passa a ser negligenciada enquanto factor que determina a imposição de regras excepcionais. E se isso não acontecer, o dito “novo normal” arrisca-se a ser uma permanente excepção.

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