Crónicas

Incerteza

Uma pessoa deita os olhos às capas dos jornais — a oração matinal do homem moderno, já dizia Hegel — e fica marcada para o dia todo pela estranheza do tempo que passa. Quais Sócrates (o grego) de trazer por casa, acabamos a dizer a frase da praxe: só sei que nada sei! A única coisa certa é a incerteza.

As muitas incógnitas assediam-nos de todos os lados: sobre o tempo que encolheu (pois o agora é tudo, o futuro foi tragado pelo presente e não aceita grandes planos para lá do “distanciamento de segurança”); sobre a pandemia que progride sem fim à vista, rebelde a confinamentos impossíveis (mais a vacina que volta e meia parece pronta, mas afinal é só uma experiência que putativos ditadores ensaiam para ver quem ganha a corrida primeiro); sobre o desconhecimento de como será o amanhã (talvez venha a ser possível alguma forma do que chamam o “novo normal”, afinal uma definitiva a-normalidade, com a sombra do vírus em quotidiana angústia subliminar); sobre o implausível da liberdade e da alegria face ao devir espectral desta pandemia (feita de vírus e de medo, projetando a sua sombra mortal sobre os espaços todos da vida e do tempo que nos cabem). Incerteza ainda porque, da doença, afinal, conhecemos pouco mais que o contágio traiçoeiro e alguns dos seus efeitos degenerativos. Mas, batalhões de virologistas & epidemiologistas reunidos asseveram-nos que o “bicho” é mutante e perverso e que, do vírus mesmo — 19 milhões de infetados e 700 mil mortos depois — sabemos (ainda) muito pouco. Eles fazem lembrar, na sua “douta ignorância” sobre o Corona, o modo como os teólogos medievais abordavam a questão de Deus, quando diziam: d’Ele, é muito mais o que não se sabe (do que tudo aquilo que possamos afirmar) ...

Voltemos, então, à “oração matinal” que nos vai formatando a cabeça para a estranheza deste tempo precário e incerto. Lá como cá, saltam dos escaparates títulos incríveis. Por exemplo: consultas presenciais nos centros de saúde sofreram quebra de três milhões (e cada vez mais mortes por explicar); Portugal vai reduzir o número de testes (para uma imagem “menos catastrofista”); medo do vírus aumenta mortes em casa; consultas de saúde mental disparam com a pandemia; foi o Julho com mais mortes em 12 anos e o covid-19 só explica 1,5%.

E assim por diante, todas as semanas, mais covid, menos covid. Bem de saúde, só mesmo o ouro: o custo da onça já passou o patamar dos 2 mil dólares! Não tarda nada, aparece por aí outro telexfree!

O que é que tudo isto quer dizer? Que, passados meses de pequenas-grandes vitórias nesta luta desigual, é toda uma incógnita que se abre à nossa frente nestes domínios da saúde e da pandemia que veio para ficar. Aos próceres do sistema, que delinearam todo um planeamento centralizado para responder à epidemia, convinha não perder de vista a realidade: a emergência viral não apagou nem vai anular a existência das outras patologias, recorrentes no sistema hospitalar ou na saúde pública. O futuro próximo e toda a estratégia do cuidar exigem basicamente isto: não basta gerir a Doença, é preciso ver e ouvir o doente! O cuidar verdadeiro e solidário vai muito além do pensamento sistémico e do mapa estatístico. Se não, ficam demasiadas respostas por realizar e corremos o risco de dar razão à personagem da Mafalda: “Eu amo a humanidade. São as pessoas que não suporto”.

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