Crónicas

“Quando eu morrer voltarei...”

É o meio do verão e não há como não falar de férias. As de hoje são as possíveis, mas não há maneira de ficarmos apenas no agora deste quadrado de tempo sem espessura. Não, é o meio do verão e o seu esplendor faz chover na memória todos aqueles dias longos, cheios de sol e de azul, quando a palavra férias dizia o tempo feliz de uma aprendizagem do mundo e era leve o sabor da vida reconcialiada com a vida, inteira na sua urgência de ser, as cores da alegria ainda sem fissuras nem enganos, vida natural e simples na sua brevidade, mas onde se conseguia, por instantes, aspirar o perfume de uma breve plenitude.

Era o meio do verão e a vida estava ainda no princípio. Era quando, naquela língua de praia (que nos parecia muito longa) de uma Madalena do Mar ainda antiga e muito verde, corríamos depois do almoço para “o calhau” do canto da rocha, suave enseada no extremo oeste, o mar liso e brilhante pontuado por pequenas penedias, praia amena de pequenos calhaus polidos, lavada só para nós todos os dias... Na altura, as nossas praias (de calhaus) ainda não tinham sido engomadas pelo cimento, e aquela terminava ali de repente, cortada pela rocha altíssima que se erguia abrupta até ao miradouro lá no alto dos Moledos, paragem obrigatória para ver a Madalena em todo a pujança telúrica de fajã que o tempo adornou ali, onde os abismos acabam e o mar começa. Ali, do miradouro, o olhar abrangia a terra e o mar, e tínhamos da freguesia a primeira imagem total, que iria ser muito útil nas redações da quarta classe: a nossa freguesia é um tapete verde salpicado de rosas vermelhas, sugeria a professora. E nós lá ensaiávamos um texto, sete ou oito linhas para ver até onde ia a imaginação e o vocabulário (mas isso era no tempo em que na escola se batalhava em redações semanais para ensaiar a sintaxe e os verbos sem entorses de maior, e ninguém ousava os pós-modernos pontapés na gramática do “houveram dias de muito calor”, ou do viral “tratam-se de dois casos vindos do Reino Unido...”).

Era o meio do verão e as férias eram um intervalo de alegria na descoberta do mundo, a perceção da vida como uma realidade que vem por todos os sentidos, o mar ali mesmo, pura frescura transparente, mergulhos breves na retoiça da miudagem em braçadas extenuantes no desafio de chegar primeiro e então descansar sobre “o penedo” mais distante, tardes em que o tempo escorria lento, nada de pressas, os figos e os tabaibos crestavam ao sol e esperavam por nós no meio das rochas, encosta acima: seria só dar uma fugida no regresso a casa, que a fome era já mais que muita. Se a preguiça nos estendesse no calhau até ao pôr-do-sol, ajudávamos a varar a canoa que regressava de uma ida ao “peixe fino” e, com sorte, ainda trazíamos um bodião e duas garoupas para uma ceia mais animada...

Era o meio do verão e nesse tempo, para além do sol e do azul do mar, o silêncio era ainda um húmus que alimentava a vida toda: dava para ouvir a pressa da água nas levadas, o verde imenso das bananeiras crepitava sob o calor imóvel da tarde, e o vigor de uma natureza intocada era tão puro que se podia ouvir as uvas a amadurecer, a caminho de um setembro de suadas fainas vinhateiras, a vida de novo jorrando em vermelha abundância sob os nossos pés a pisar o jaqué, na tagarelice bem disposta dos lagares.

Era o meio do verão e nesse tempo havia ainda as longas tardes de sombra, de silêncio e de livros. Primeiro, o fascínio de descobrir Salgari e seguir o imbatível Sandokan nas florestas da Malásia. Mais tarde, foram sendo requisitados ao “senhor Gulbenkian” o Balzac retratista da burguesia parisiense, o Walter Scott dos romances históricos, o Camilo para ler com dicionário ao lado e, anos depois, os velhos russos, figuras de um mundo distante naquelas barbas de antiquíssima sabedoria, obrigatórios para se conhecer alguma coisa dos labirintos e sítios esconsos da alma humana. E lá veio a Anna Karénina, com aquele começo que é todo um programa: “As famílias felizes parecem-se todas; as famílias infelizes são-no cada uma à sua maneira”. Um sentido para ser revelado muito mais tarde...

E, claro, avançando os anos já sem o pico juvenil desses verões inesquecíveis de azul e de verde, era ainda assim o meio da vida erguendo-se em sonho e promessa, e dá-se então a descoberta da imortal Sophia, que fala do mar e da luz, da perfeição grega a modelar o sentido do mundo, o liso das estátuas e dos estios fazendo eco de um tempo primordial. Então, com aquele imenso verde, aquelas rochas tão inteiras que nos seguravam em terra firme, e aquele mar da infância que balbuciava todos os dias nas marés da memória — a sua poesia da integridade e da beleza nua das coisas concretas foi como o despontar de uma revelação, janela aberta sobre o real absoluto de que fala Holderlin. Só mais tarde, muito mais tarde, ao ler O Nome das Coisas e o Livro Sexto, percebi que ética e estética aspiram à síntese perfeita na verdade da palavra poética, aí onde transparência rima com transcendência. E julguei, então, ter ouvido um eco de férias felizes naqueles versos maravilhosos: “Quando eu morrer voltarei para buscar/ Os instantes que não vivi junto do mar”.

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