Crónicas

O livro de BHL

Fiquei a saber da existência de Bernard-Henri Lévy (BHL) no final dos anos 70, quando em Portugal se começou a falar dos chamados “Novos Filósofos”, expressão cunhada pelo próprio e que juntava um grupo heterogéneo de intelectuais franceses desiludidos no pós-maio 68, onde se destacavam pensadores como Pascal Bruckner e André Glucksmann, entre outros. O que ligava o pensamento destes “filhos do maoísmo”, era o trabalho militante de demolição teórica do marxismo e a denúncia da sovietização da ideologia, procurando mostrar como na filosofia dos grandes “Maîtres Penseurs” (Hegel, Marx e Nietzsche) já se encontram as bases “genéticas” do totalitarismo e dos terríveis gulags que viriam depois: coisa que muita “intelligentsia” da Europa de então não conseguia “vislumbrar”…

Li algures que ser conhecido pelas iniciais é um privilégio que os franceses reservam a muito poucas pessoas: Bernard-Henri Lévy é uma delas. Não desdenha tomar partido e estar presente onde julga as liberdades ameaçadas, da guerra dos Balcãs aos campos de refugiados e, no seu “engagement”, toma posições apaixonadas, que ora suscitam apoio, ora detratores. O novo livro, “Este Vírus Que Nos Enlouquece”, dá conta da sua última batalha, de resto enunciada na entrevista ao Expresso: “É preciso acabar com o discurso do medo”.

BHL coloca-se claramente como “semiólogo”: ele quer sobretudo analisar o discurso viral da pandemia e vai decompô-lo de forma exasperada, face ao pânico criado e aos traumas da liberdade que (nos) podem cilindrar o futuro. O autor não está contra a medicina ou a ética do cuidar, coloca-se antes na margem de quem observa e se incomoda com o modo inusitado como desta vez, e depois de várias pestes (só no século XX), reagimos ao vírus planetário. Vários estigmas contaminam, segundo BHL, o público discurso da “servidão voluntária”: cientistas da incerteza são ouvidos como se fossem oráculos, chefes de Estado rodeados de brigadas médicas a debitarem estatísticas de recuperados e mortos, numa espécie de “mundo paralelo” a cada telejornal; pior que tudo, a conversa de que o vírus traz consigo “uma mensagem”, a ideia de punição ou redenção que é preciso cavalgar – e rapidamente se perfilaram os discursos da catástrofe ambientalista e a febre interpretativa do “isto nunca mais”; depois, os “felizes do confinamento” (com a lareira aquecida e o frigorífico recheado), cristalizados na suposta descoberta de uma interioridade afável, afinal assente na recusa do outro, o “distanciamento” como absurdo paradigma da “vida na pólis”; o inumano a emergir da nova selvajaria, os velhos dispensáveis e os mortos sem funeral, a vida aterrorizada consigo própria, a passagem do Estado-providência ao Estado-vigilância, “um povo de dietistas, de profiláticos, de vegetocratas, de ecolocratas”, de todos os lados a confluência para o rebanho final, o “silêncio no galinheiro” a crescer, a animalidade messianicamente regulada pelo deus digital; pelo meio e no pico da crise, autorizações covid para os passeadores de cães, mas não para os frequentadores de igrejas, bibliotecas, museus ou sinagogas, “pilares de civilização” agora em ocaso; finalmente, o mundo da vida e a vida do mundo a levarem uma tareia do “rei Corona” – essa seria a “lição do vírus” para os tiranos da obediência civil a coberto da urgência sanitária…

“Esta é a razão da minha fúria”, diz BHL a terminar o seu livro: “resistir a esse vento de loucura que sopra sobre o mundo”.

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