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Crónicas

Se fosse agora...

Está calor e parece que tudo se consome nesta expressão, neste “está calor” que empurra para a frente os problemas. Por enquanto há sol e praia, estamos todos mais bonitos e mais bronzeados e ninguém quer pensar no que se agiganta no horizonte. É uma crise, vem carregada como uma tempestade, mas com este leste que chega de África não apetece pensar.

Se a minha tia Alice fosse viva, sei que haveria de telefonar todas as manhãs depois de ler as notícias para saber o que eu achava disto tudo, de não haver turistas e da doença. A minha tia tinha muito medo de doenças e nunca se conformou com a ideia da morte. Sei que íamos falar e discutir até que começasse a contar as histórias do tempo da guerra.

Os anos em que, na venda, só havia bacalhau amarelo e fino, o milho era de pouca qualidade e não se comia o que se queria. A sorte era a família ter fazenda, que nunca faltou o que comer. A conversa haveria de andar à deriva até chegar às gibraltinas que se instalaram numa casa, lá por cima no Laranjal, por ser mais perto da casa de saúde São João de Deus, onde tinham um irmão internado.

As mulheres bonitas, refugiadas trazidas de Gibraltar quando começou a II Guerra, assim vistosas como não se via nas redondezas, tinham fama de ser “levantadas”. E ser “levantada” não era rótulo bom para uma mulher, mas a tia Alice lembrava-se mais de como eram modernas, como passavam todos os domingos pelo caminho na viagem a pé até ao Trapiche. E também tinha memória de ouvir um miúdo a subir pelo cemitério, a dizer que ia haver bombardeamento.

Nem a luz a petróleo se acendeu durante noites e foi preciso proteger as vidraças. O nervoso e o medo que lhe ficou desse tempo nunca mais a abandonou, nem à minha mãe que se assustava com as conversas dos leiteiros na mercearia quando, em Hiroshima, rebentou a bomba atómica. Ou quando umas primas velhas recitavam de cor a chegada dos quatro cavaleiros do Apocalipse: a fome, a guerra, a peste e a morte.

As mesmas primas solteiras que, nos anos da guerra, comiam milho com uma pimenta, pois o dinheiro do Brasil – onde tinham família – nem sempre chegava. E se era assim para comer, no resto era ainda mais poupado, lavado, remendado. Não houve desperdício, acho que nem havia lixo. Ou pelo menos foi essa a ideia que se formou na minha cabeça depois ouvir estas histórias vezes e mais vezes, da infância até há coisa de um ano quando, todas as manhãs, a minha tia Alice partilhava comigo o medo que lhe dava o mundo e a insegurança que sentia no futuro, no futuro que os netos iriam viver.

Eu tive sempre resposta, que não ia ser assim, que haveria de aparecer solução – ainda acho que sim, que, até entre os escombros se encontra esperança, mas, se fosse viva e me telefonasse, se fosse agora, com a crise a chegar, não sei se teria argumento, um que a convencesse de que não ia ser tão mau.

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