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Crónicas

Como o cinema era belo

Tomo de empréstimo este título ao excelente catálogo de João Bénard da Costa, “Como o Cinema era Belo”, publicado por ocasião dos 50 anos da Fundação Calouste Gulbenkian (50 anos, 50 filmes) e que é uma evocação, feita de amor e conhecimento, da grande beleza do cinema clássico – e que só poderia vir da plena autoridade de alguém como o antigo diretor da Cinemateca Nacional.

Na verdade, muito antes da vulgarização da televisão como “eletrodoméstico do lazer”, sobretudo a partir de finais dos anos setenta, havia já toda uma consolidação do Cinema como verdadeira arte “e” indústria (singular “união de facto”), legando à memória cultural do século XX nomes incontornáveis de uma autêntica odisseia do cinematógrafo, que viria habitar de forma indelével o imaginário de várias gerações.

Vem isto a propósito da morte do grande Enio Morricone (1928-2020), compositor absolutamente único de “música para cinema” (e não de “bandas sonoras”, como ele próprio dizia). O poder criativo e inovador do Maestro Morricone, plasmado em composições arrojadas e inesperadas, como se, em cada filme, das imagens fizesse brotar aquela música essencial à estética própria da obra, traduziu-se numa certa forma de “imortalidade” alcançada por dezenas de filmes, que, meio século depois de feitos, povoam ainda emocionadas memórias cinéfilas. Somos do tempo em que, pelos finais dos anos sessenta, longas sessões da tarde com apenas um intervalo entre dois filmes enchiam de emoção e aventura adolescentes fins de semana, com ringos e djangos a dispararem sem piedade na tela do Cine Parque, ou em cavalgadas heroicas que ressoavam avassaladoras no fantástico écran da grande sala que era o Cinema João Jardim. A arte de Morricone certamente não se ficou por um género, pois fez centenas de composições e podemos bem elencar três dezenas de filmes que à fortíssima expressividade da sua música muito devem do êxito que os popularizou e fez a sua visão perdurar no tempo: lembrem-se, entre muitos outros, “A Missão”, ou “Cinema Paraíso”. Mas é certamente no género tão “europeu” do western spaghetti, que o génio musical se tornou tão autoral e marcante como o do realizador e amigo Sergio Leone, criando partituras verdadeiramente únicas, capazes de modelar de forma original a mitologia de um género que ele também ajudou a criar: sem a música de Morricone, o tilintar das esporas, a aridez rochosa dos cenários, a cal suja dos povoados abandonados, a sombra da forca em espera, o rosto cavado dos maus e o olhar imóvel dos bons na hora do duelo final, os grandes planos dos rostos (dos heróis, ou dos bandidos) trazendo à história uma espécie de dimensão épica — sim, muitos outros tentaram fazê-lo, alguns ensaiaram uma aproximação a tais coreografias, mas poucos como Leone o conseguiram, porque tinha com ele a inventiva de Morricone, que conhecia como poucos a especificidade da linguagem do cinema. Articular a escuta e a visão era o seu dom e a sua arte. Basta rever a chamada “trilogia dos dólares” e o filme maior que é “Aconteceu no Oeste”, para percebermos como a sua música é cinema em estado puro, uma iconografia própria e íntima que nos transporta a níveis de singular beleza. E o que é belo permanece para sempre.

(Nostalgia... mas porque não, mesmo em tempos da pandemia que tudo sufoca e que quer ser o totem único das nossas falas e das nossas emoções?

Resistir é preciso... e a memória, um auxiliar precioso!)