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Sem (in)tensão panegírica

Estava com a minha mãe na bancada central a assistir à troca das bandeiras, dos discursos e dos abraços

Data grata e saudosa é o 25 de Abril de 1974. De repente, os nossos vizinhos portugueses passaram a ser vistos como amigos e, alguns deles, como camaradas. Os mais afoitos ao antigo regime estavam aflitos, mas lembro-me de que lhes foram dadas garantias de que o processo era político, não dado a vinganças e julgamentos apressados. Mesmo assim, desconfiados, alguns quiserem arrumar as malas e regressar a Portugal, não sem sentimentos de perda e de saudade. Uma professora, colega da minha mãe, explicava-se: “Como toda a revolução, esta também terá os seus momentos de exagero e radicalismo”. A minha mãe, que era independentista e acompanhava a Rádio Libertação no sussurro do quarto dos fundos, assegurava que a independência de Cabo Verde seria a forma de Portugal se reencontrar com o seu melhor amigo. A professora punha reservas ao otimismo da minha mãe, replicando que de qualquer maneira o Estado Novo, mesmo com a primavera marcelista, havia já dado o que tinha de dar. De repente, essa conversa deliciosa regressa à minha lembrança. No dia 5 de Julho de 1975, gratíssima data, estávamos todos no Estádio Municipal da Várzea a celebrar a Independência de Cabo Verde. Estava com a minha mãe na bancada central a assistir à troca das bandeiras, dos discursos e dos abraços. Um avião da Força Aérea Portuguesa sobrevoou o estádio e jogou à multidão mensagens de felicitações. Momento mágico aquele. Em tempos, andando por Lisboa, deparo-me com o meu amigo coronel e, conversa fiada, descubro que era ele quem pilotava o avião da minha lembrança.

Hoje, não houvesse esta confusão da pandemia, estaria na Itália, mais precisamente no Vaticano, a celebrar o Cinquentenário da Conferência de Solidariedade com os Povos das Colónias Portuguesas e da Audiência do Papa Paulo VI aos líderes africanos Amílcar Cabral, António Agostinho Neto e Marcelino dos Santos. Se a conferencia internacional ocorrida em Roma, com mais de 250 delegações internacionais, inclusive várias delegações antifascistas portugueses, foi um momento alto de afirmação anticolonial na Itália, país da NATO, a audiência papal foi simbolicamente demolidora à imagem do Estado Novo e à sua pretensão colonial em África, especialmente por prevalecer na altura a Concordata entre a Santa Sé e Portugal. Os eventos de 1970 tiveram impactos relevantes na lutas pelas independências de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe e deslegitimaram o regime perante a opinião pública internacional, não só dos países ocidentais como de Portugal. Assim, não há como não ter uma leitura complexa do 25 de Abril de 1974, a de incluir a luta de libertação dos povos das antigas colónias portuguesas como fatores determinante, ainda que não únicos, pela instauração das liberdades e da democracia em Portugal. Estaria hoje em Roma, com amigos, a promover uma conferência sobre o impacto histórico dos eventos em Cinquentenário, algo a ser realizado em webinar ainda este ano e em presença no próximo ano. Se a pandemia permitir...

Lisboa, último fim-de-semana. A manifestação andou pela avenida abaixo. Assentou arraial no terreiro do antigo Paço da Ribeira, ali onde, outrora, lotava-se a urbe para trato o gado humano. Vociferou-se deus, pátria e família, mote de tropel já chuchado. Amaldiçoou-se, com “acuderei ventureiro”, seja cigano ou preto, seja imigrante ou comunista – gente portuguesa e estrangeira. E, estribeiro-mor esse na nova cavalariça saudosista, ensaiou-se “Deutscher Gruß”, num berreiro de “Não somos racistas!”, para o inglês ver. Para a foto família, presume-se, enquadrado no Arco da Rua Augusta. Merecia, ai como merecia, o coice puro-cobre de um cavalo montado (pela estátua) de D. João I. Pode a liberdade descuidar-se daqueles que a querem matar? Olho para o rio e recito Do Tejo vai-se para o mundo. E sinto que ao Tejo vem o mundo. A liberdade é que os mundos refaçam o mundo.

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