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Crónicas

Os louros

Os tempos pedem verdade, talvez verdade difícil e impopular. Palavra que pedem, até, colaboração entre adversários, e não o passa-culpas estéril que a todos arrasta por igual. Os louros são uma honra, mas também uma erva aromática Quem governa para o elogio, arrisca-se a arder nele

Às vezes perguntam-me se não tenho orgulho no Governo Regional. Respondo que sim, que tenho, e zero mortes falam por si. Só depois chega a pergunta que realmente queriam fazer: então porque não os elogias no Diário?

Primeiro, por princípio e pudor. Pedro Ramos, que mais me apeteceria elogiar, é a todos os títulos um amigo da família. Querendo ser imparcial, não o seria. Tentando, diria ainda assim que o admiro, e eu não admiro ninguém. Não só pela gestão da pandemia, mas por comunicar de forma séria, clara e consistente, por ter lidado com a queda da árvore, com o novo Hospital, e com um caso quase grave de populismo clínico (ou seria um caso quase clínico de populismo grave?) com as qualidades científicas e humanas que dele fizeram um médico exemplar. As críticas são inevitáveis, e algumas até inevitavelmente justas. Mas a Política disputa-se entre aqueles que se deram a ela por serviço, e aqueles – bem mais – que se perderam para ela por poder. O Secretário Regional da Saúde está, inequivocamente, no primeiro grupo, e isso é nestes tempos uma sorte sem sombra.

Mas há outra, melhor razão para ter andado calado. Escrever exige um módico de compromisso com a verdade. Havendo várias formas de mentir, a mais eficaz é a sugestão. E elogiar políticos agora sugere, bem perigosamente, que o pior já passou, e vamos em breve reaver um vislumbre de normalidade e subsistência.

Perdoem-me, mas não vamos. Avizinha-se um Verão sem turismo. Não o digo com a sacrossanta autoridade dos “dados”, que hoje parece substituir o conhecimento e a capacidade de os interpretar. Digo-o porque tenho olhos e ouvidos, e o que empiricamente se ouve e observa vale – não me lixem – pelo menos tanto quanto os inquéritos que o Turismo de Portugal vai infligindo a meia dúzia de bifes ensonados, gozões e desinteressados, que brincam àquilo como quem preenche o Totobola.

Para realidade temos, por exemplo, a Baixa de Lisboa, que seria numa tarde de Junho a coroa da cidade. Lojas históricas, onde antes nos acotovelaríamos para entrar, colocam vendedores à porta, que descrevem arcos para a entrada como se apresentassem a filha num baile de debutantes – como se ninguém tivera, ainda, inventado a publicidade. Os restaurantes recebem, no melhor dos casos, com uma amabilidade excessiva e submissa; no pior, com um desleixo frustrado e insolente. Entre dois ou três transeuntes em teletrabalho, ou dispensados dele, cresce a população a que os franceses chamam de “bizarros”: pedintes, malabaristas, cuspidores de fogo, outros artistas, vendedores ambulantes, e os seus cães. Na Brasileira, um grupo de dançarinos aguarda, inconclusivamente, por um motivo para ligar o rádio e levar as mãos ao chão, mas o motivo não só não chega, como foi proibido. Ouvem-se passos, papéis de sacos, isqueiros, onde não se viam pés. E o sol, antes um bálsamo, um activo, e um convite para um gelado, bate no calcário como um castigo de Deus. E queima.

Esta gente, como tanta, espera por Julho. Em Julho, com a abertura das fronteiras e do transporte aéreo, tudo mudará. Será? Da Europa, o que nos chega é diplomacia arcaica: oculta, despótica e demagógica. Espanha omitiu os números durante 12 dias, esfarrapando-se na desculpa de que revia os critérios de contagem. Enquanto os matemáticos se entendiam, não morreu ninguém, e foi no intervalo dessa vigarice que os espanhóis negociaram com o Reino Unido um corredor verde, que a Grécia já assegurara, assim como as inevitáveis França, Itália e Alemanha. Do mesmo passo adiou-se, por motivos insondáveis, a abertura da fronteira terrestre com Portugal. Países mais sinceros colocaram-nos, entretanto, numa lista negra, de onde eles próprios constariam houvesse nisto honra e equilíbrio.

Não há, e já não é gestão de pandemia. É proteccionismo, nas barbas de uma Europa ingénua e impotente. A União teve já tempo para alinhar critérios. De fingir, pelo menos, que lhe interessava ressuscitar Schengen, e assim prevenir e censurar os abusos e as preferências que evidentemente se aproximavam. A Europa regrediu, e foi nestes meses um clube de amigos, de que Portugal se excluiu e descurou. Desta fraqueza não pode sair a ordem, e da desordem não pode sair a confiança.

Além da desconfiança – que é tudo – seria preciso que as pessoas quisessem viajar. E não querem, ou não querem tanto como gostaríamos de pensar. Esse desejo, assim como o de turismo sem Covid, é uma fantasia que parte de uma negação, que convém quanto antes esconjurar.

Lamento, mas o que se segue não tem precedente. Ter zero mortos, como veremos, foi a parte fácil, e as reivindicações alteram-se conforme os bolsos se esvaziam. O elogio aos políticos seria injusto, temerário e temporário, mas seria sobretudo um sinal errado. Os tempos pedem verdade, talvez verdade difícil e impopular. Palavra que pedem, até, colaboração entre adversários, e não o passa-culpas estéril que a todos arrasta por igual. Os louros são uma honra, mas também uma erva aromática. Quem governa para o elogio, arrisca-se a arder nele.

Exijo mais. Faço mal?

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