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Perdidos por mil

O sistema precisa - lamento - de um abanão. Não de um abanão destrutivo, mas de um abanão da política moderada, responsável, e ideologicamente comprometida, que entretanto se deixou vencer e adormecer pela sugestão da derrota

Por entre as tontices destes dias, um cisne negro passou despercebido. O vírus apareceu no IPO, o Instituto Português de Oncologia. E o vírus não apareceria – como apareceu – no IPO, se estivéssemos a lidar com ele assim tão bem.

A naturalidade e o desbarato com que essa notícia se deu – que azar! – e a forma dissimulada como não se a investigou revelam outra coisa: que os portugueses são cúmplices de uma certa clandestinidade de poder, e admiram-na mais ou menos secretamente. Há um teatro de superfície, uma película de integridade, que se protege como a casca de uma fruta que se quer vender podre. Essa fraude é um desígnio nacional. Uma forma de patriotismo, e talvez a essência dele. Denunciá-la é traição, lesa-pátria.

Como recordar Pedrógão no dia em que se anuncia a fase final da Champions em Lisboa – um dia que evocou, por razões estranhas, a febre e o branqueamento de paquidermes do Euro 2004. Como reparar que os vizinhos europeus, por desconfiança ou proteccionismo, vão abrindo reservas a abrir o seu espaço aéreo a Portugal – e que a simples reserva é fatal, e a promessa do turismo estival bem pode ser um balão rebentado de tanto soprar. Ou decompor o aumento, visível, da burla, do roubo, do pequeno crime, desde as caixas de cereais vazias e aos ovos trocados no supermercado até ao regular estilhaço dos vidros dos carros, sinal de pobreza galopante e desesperada que nem em santos e romarias se alivia.

Não, continua tudo bem, nesse melhor dos Mundos possíveis que é Portugal. É bom que a verdade fique à costa. A verdade estraga ao País a festa da fantasia, que é a única que o redime, e deve por isso ser protegida a todo o custo.

Pensando bem, as nossas tragédias fazem-se sempre de traidores reabilitados, mas nunca de cúmplices punidos. O denunciante, que tem razão, é imediatamente fustigado pela máquina que procurou desmontar; o cúmplice, que alinhou na farsa, é um compreensível iludido do seu tempo, e compreensivelmente regressa assim que a máquina deixar de fingir que se importa com a ilusão.

Este porreirismo, já o disse, é sinal de atraso e incivilização, e o seu elogio sinal de coisa pior.

Esta semana tratou-se, pois, de uma coisa pior. As figuras gradas do Estado não se alinharam, em horário nobre, como esfinges de um templo perdido para celebrar a Final Eight da Champions. Não. O que os órgãos de soberania vieram anunciar foi a sua opinião sobre a ralé que governam e, por extensão, a sua opinião sobre si mesmos. Por embaraço, cada português simulou que o discurso se diria a outro fulano qualquer – um compatriota desconhecido, desgraçadinho, rústico, que na tasca e na bola entrevia, cabisbaixo, as virtudes do trabalho e do pão. Esse embaraço escudava-nos, claro, de uma verdade mais terrível: que aquilo é mesmo o que o Estado, com “E” maiúsculo”, pensa de nós. De mim e de si.

O momento não se tratou, pois, de um lapso ou de uma distracção. Surgiu de caso pensadíssimo, e foi por isso o momento mais grave da legislatura. O porreirismo do Presidente da República e do Primeiro-Ministro, para com os portugueses e entre si, diz tudo sobre o quanto dependem dele, e sobre o quão entranhada está a irresponsabilidade no País.

No caso, é particularmente triste, porque é particularmente simbólico. Os políticos, confrontados com a indigência ou desespero, deparam-se com uma opção antiga e crucial, entre responsabilidade e habilidade: ou abordam o problema, e, com risco político e pessoal, elevam os eleitores; ou aproveitam-se do problema e, salvando a pele, diminuem o povo.

Costa e Marcelo fizeram a sua opção. E a estes experimentados políticos, inequivocamente habilíssimos, ninguém diz que a ameaça populista cresce, e não cresce só por razões alheias ao seu controlo. Cresce aliás na proporção directa destas suas combinações, das geringonças e consensos, moles e peganhentos, que vulgarizam o voto, e do desprezo disfarçado, talvez inconsciente, que reservam à inteligência dos portugueses.

É duro? É. Desconsideram-se injustamente méritos, qualidades, e bom governo de ambos? Seguramente. Mas não fui eu que disse que um torneio de bola era uma recompensa para os profissionais de saúde, como se médicos e outros profissionais instruídos – por vezes exaustos, mal pagos e sub-aprovisionados – se deixassem gratificar como garotos depois da visita interminável da Tia Conceição.

O sistema precisa – lamento – de um abanão. Não de um abanão destrutivo, mas de um abanão da política moderada, responsável, e ideologicamente comprometida, que entretanto se deixou vencer e adormecer pela sugestão da derrota. Derrotado que seja, é de bom tom que se arranje um lugar onde depositar a esperança – e o desejo – de o governo ser algo de mais nobre, ou pelo menos diferente de uma feira, ou de um expediente de sobrevivência e arrebanhamento, ao serviço da caricatura degenerada e dependente de um cidadão.

De onde vem esse abanão? Sei lá. Miguel Albuquerque, nas presidenciais? Porque não?

Resta-nos, depois disto, alguma coisa a perder?

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