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Crónicas

As Três Virtudes

Nos dias de breu da epidemia que confinou ao sofrimento e ao medo milhares de seres humanos nos quatro cantos do planeta, tornou-se mais real a experiência da “compaixão” como verdadeira dimensão do humano: com-partilhar o sofrimento do outro, sentir com ele, participar da infelicidade alheia para minorá-la.

Real à escala do mundo, real à escala da ilha.

Então, não sei por que “artes”, não conseguia tirar da mente a imagem do painel azulejar oitocentista existente na torre-varanda-mirante do Museu de Arte Sacra do Funchal, chamado “As Três Virtudes”, uma bela representação das chamadas “virtudes teologais” (que têm em Deus o seu fundamento) – Fé, Esperança e Caridade. Lá do alto o painel observa a cidade e o mar; e interpela-nos também, na alegoria da sua figuração.

Antes de serem “teologais” – na explicitação do discurso cristão e da adesão crente –, essas são virtudes de toda a pessoa que procura viver a sua própria humanidade: não é possível viver sem confiar (fé) e sem acreditar no que ainda não se alcançou, mas se antevê (esperança) no horizonte da ação impulsionada pelo amor (caridade).

Porquê pensar nisto?

Praticamente três meses depois da grande clausura, olhamos para trás e medimos o alcance desta experiência. Muitos se interrogam quanto ao que aprendemos com isto e quais os reflexos que este “trauma” impensável acabará por ter nas nossas relações, e no futuro daquilo que as democracias estabeleceram como “modo de vida”. Para já, fica claro o quanto esta crise fez aparecer o melhor de nós enquanto comunidade humana, mostrando que o egoísmo entre as pessoas e entre as nações não é uma alternativa. Na imensa vaidade e poder do “homo tecnologicus”, ficámos sem escapatória. E vimos o morrer como uma possibilidade bem real, só resolvida pela ação prática do cuidar, pelo compromisso da ajuda solidária, pela dádiva de si em favor do próximo mais próximo – o vizinho sem recursos, os doentes hospitalizados, os que de um dia para outro fizeram a experiência do abandono ou da morte. Energias insuspeitadas viabilizaram uma experiência de verdadeira “vizinhança”, proximidade na compaixão vigilante, no meio de cidades regidas pela indiferença e modeladas pela alienação como forma de sobrevivência quotidiana. Esta dinâmica da vida, capaz de pôr em marcha toda uma solidariedade ativa do Bem, tornou-se especialmente visível – e, afinal, vitoriosa – no sector da saúde, onde tantos cuidadores deram tudo de si para que muitos pudessem recuperar: no meio do negrume que alastrava, eles eram o exemplo vivo da com-paixão, tornando mais real e expressiva – em cada cidade, em cada nação – a vitória sempre renovada da vida contra a morte!

Fé, esperança e caridade: de uma forma ou de outra, a quarentena pode ter sido uma experiência humanamente enriquecedora. Aqui ou ali, mais próximo ou mais longínquo, fomos interpelados pelo limite e pelo silêncio, pelo drama multiforme do sofrimento alheio, mas também por exemplos virtuosos de entrega pessoal ao sacrifício, dádiva compassiva em favor do outro. Reconquistar a saúde como bem maior da comunidade exigia o trabalho abnegado dos “cuidadores”, cuja ação eficaz e valorosa compaixão pelo próximo tornaram verdadeiramente salvadora esta vivência das três Virtudes: acreditar que era possível, esperar que desse certo, e agir com amor para tornar grata essa esperança. Felizes dos que, no corpo da humana compaixão, puderam viver a experiência una e inteira das Três Virtudes!

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