>
Artigos

Retorno aos valores

Na conjuntura singular e comum atual, é obrigatório perguntarmos: afinal, onde está a Europa dos valores?

1. Na noite de 31 de dezembro de 2007, o ‘Réveillon’ na estação pública de televisão portuguesa, exibido em direto do Pavilhão Atlântico (na época designava-se ainda assim), contou não só com uma das maiores audiências da década, alguns convidados ilustres, mas também – e sobretudo – com o momento da despedida do quarteto humorístico “Gato Fedorento” da RTP, na medida em que chegara ao fim o contrato celebrado entre as partes. Nessa excêntrica noite, as luzes, o som, a alegria, as fantásticas bailarinas, mas particularmente a entrada triunfal de Ricardo Araújo Pereira, José Diogo Quintela, Tiago Dores e Miguel Góis nos invejados diciclos “Segway”, foram a receita mágica para o espetáculo a que se assistiu. Porém, no decurso do mesmo irrompeu uma inédita e singular proposta: passarmos diretamente de 31 de dezembro de 2007 para 1 de janeiro de 2009. Na altura, rimos, gracejamos e brincamos todos, mas esta hipótese (e possibilidade), hoje, dar-nos-ia grande agilidade perante a tragédia que estamos coletivamente a viver e da qual ainda não sabemos bem como sair.

2. Declara um provérbio popular que “tudo o que começa mal, acaba mal”. 2020 parece não se ter estreado da melhor maneira. Nos primeiros dias do ano continuavam a chegar notícias de que, apesar da chegada de alguma chuva, os gigantescos incêndios da Austrália prosseguiam ativos (desde setembro de 2019) e que estavam ainda longe de ser dados como extintos; que uma área equivalente à Coreia do Sul tinha sido consumida pelas chamas, 28 pessoas tinham já perdido a vida e que mais de um bilião de animais havia sido carbonizado e milhares de edifícios ficaram destruídos. Analogamente, também chegavam informações relativas a algo que eclodiu e se estava a passar em Wuhan, província de Hubei, na China, o surto de um novo coronavírus (mais tarde denominado SARS-CoV-2) – e de uma nova doença (COVID-19) – que extenuava já profissionais de saúde e esgotava os hospitais de Hankou, o hospital central de Wuhan e o hospital Zhongnan (da Universidade de Wuhan), onde faltava um pouco de tudo, desde meios materiais, humanos, métodos de combate, mas cujas informações difundidas pelos meios de comunicação chineses eram algo contraditórias. A grande nação chinesa estava, naquele período, mais concentrada ainda em preparar os festejos da noite do Novo Ano Lunar – ano do Rato (que segundo o horóscopo chinês antevia boas perspetivas em geral, sendo favorável a nível financeiro, no domínio dos negócios e das iniciativas particulares) – do que em vigiar, detetar, prever e conter uma epidemia que se converteria em pandemia dois meses e meio depois (11 de março).

No entanto, o dia 3 de fevereiro difunde outra desgostosa notícia. Três dias depois do Reino Unido deixar a União Europeia (UE), o pensador, crítico, ensaísta, escritor e professor – um dos maiores e mais prestigiados intelectuais do mundo – George Steiner, falece, na sua casa, em Cambridge, aos 90 anos de idade. Paradoxalmente, morreu afiançando ter assistido à morte da civilização – a ocidental – de que tanto gostava, mas estava muito longe de imaginar o que sucederia no mês seguinte, não só ao Reino Unido, como à Europa da União e a quase todos os países do mundo. No meio das suas múltiplas e grandes obras, por diversas vezes George Steiner questionou a frágil condição humana e a possibilidade do colapso do nosso modelo de sociedade que saiu da ‘grandiosa revolução industrial’, e pergunta: nesta situação, que deveríamos ler? A resposta é quase natural e muito clara: em nome do bom senso, uma passagem em que Aristóteles diz: “Cuidado! Se a tua cidade se torna tão grande que um grito por socorro, algures no centro, não se faz ouvir aos portões, então é porque provavelmente cresceu demais”.

3. Os antigos gregos acreditavam que os deuses influenciavam todos os aspetos das nossas vidas e tinham uma perspetiva circular do tempo, a qual garantia que todas as coisas permaneciam na sua essência e identidade, que não existia nem um começo nem fim, ou seja, que tudo é um eterno retorno (nascer e morrer, isto é, a criação e deterioração das coisas é uma forma de repetição das características das próprias coisas/espécies). Talvez isto patrocine um pouco a visão servida por muitos historiadores de que as pandemias são cíclicas, desde os tempos medievais, onde a Peste Negra dizimou um terço da Europa, passando pela pandemia altamente mortífera em 1918-19 (conhecida como “a gripe espanhola”), a gripe pandémica de 2009 (o vírus H1N1), entre tantas outras, e aquela que estamos agora a viver e que prepara, aceleradamente, para ultrapassar as mais de 100 mil mortes em todo o planeta.

Mas, para além do recurso ao conhecimento científico e à inovadora tecnologia de que já dispomos para combatermos esta tragédia de saúde pública, crise económica e social (entretanto instalada), que mais será necessário e substancial retomarmos, defendermos e ampliarmos para possibilitarmos uma célere recuperação e funcionamento da economia à escala global, no pós-crise? Numa palavra, valores. Os valores são referências, orientações, os “fundamentos” ou a razão de ser do agir humano. Qualquer escolha ou decisão que tomamos implicam sempre valores, pois eles exprimem aquilo que julgamos que é importante/significativo na nossa vida. Se em pleno século XXI, quase toda a sociedade considerava que vivíamos uma crise de valores, ou pelo menos a falência dos tradicionais, os recentes acontecimentos tornam-na ainda mais evidente. Às categorias morais do subjetivismo/individualismo e relativismo, adiciona-se agora uma Europa (e mundo) que vive “um período de um enorme vazio” (Alain Touraine), de ausência e/ou de atores/lideranças muito fracas, de líderes ou dirigentes sem estratégia, sem direção e sem projeto de futuro. E a esta conjugação que ocasionou a atual crise global, já assombra a eventualidade do surgimento e expansão de mais populismos e novos nacionalismos e autoritarismos (dos estados), pois como sabemos, a fragilidade institucional e a insatisfação quanto à qualidade das democracias depende muito de fatores de natureza socioeconómica. Na conjuntura singular e comum atual, é obrigatório perguntarmos: afinal, onde está a Europa dos valores? O que é feito dos alicerces – princípios identitários – da União Europeia, consagrados nos seus Tratados? O que sucedeu a valores como do respeito pelo pluralismo, tolerância, a solidariedade e igualdade, a coesão e justiça social, a verdade, o respeito pelos direitos do Homem (neste caso particular, pelos dos mais idosos, que com este vírus correm riscos acrescidos), sabendo nós que neste tempo temos de privar-nos de parte da nossa liberdade em nome de um valor superior, a vida. Onde está a ‘União’ – pois “somos todos humanos e, como homens, estamos todos no mesmo barco” (Papa Francisco) – e a memória do passado ensina-nos que “se não ganhamos todos, no fim, perdemos todos” (Pedro Sánchez)! Sintetizando, sem o(s) valor(es) da humanidade estaremos, então, todos condenados a perder esta guerra.

Fechar Menu