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Crónicas

Mulheres do meu País

«Filha, não é um trabalho para uma menina.»

Durante dois anos, de maio de 1948 a maio de 1950, Maria Lamas publicou «As Mulheres do Meu País» em 24 fascículos. Ao todo são cerca de 500 páginas sobre a condição das mulheres portuguesas no Estado Novo.

Maria Lamas foi uma das primeiras mulheres a enveredar pelo jornalismo e, tendo construído a sua carreira em plena ditadura, conheceu os dissabores de quem faz um bom trabalho apesar da censura, apesar da ditadura, apesar do medo.

«As Mulheres do Meu País» constituiu, na altura, um marco e uma afronta.

Um marco, porque é um verdadeiro trabalho de investigação sobre a condição – económica, social, cultural e política – das mulheres portuguesas durante o Estado Novo. Nesta obra, encontramos mulheres de todo o País e com variadíssimas experiências; encontramos a camponesa, a operária, a intelectual, a doméstica, a mulher do mar, a artista, a mulher da ilha... pela primeira vez, 500 páginas sobre os rostos femininos que compunham o país, a partir das histórias de quem ficava nas margens da antropologia, da etnografia, nas margens da História.

Uma afronta, porque resultou da necessidade de expor a falsidade da afirmação do Governador Civil de Lisboa de que as mulheres portuguesas estavam devidamente protegidas pela Obra das Mães pela Educação Nacional, uma organização criada pelo Estado Novo. Essa afirmação foi feita para justificar a ordem para encerrar o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, a última associação feminista que havia sido criada em 1914 pela republicana Adelaide Cabete.

Maria Lamas faleceu em 1983. Tinha Raquel Freire, na altura, 10 anos. Entretanto, «As Mulheres do meu País» tornou-se o seu livro de cabeceira.

Quase 70 anos depois da publicação do último fascículo, Raquel Freire estreou, no dia 7 de março de 2019, um documentário sobre as mulheres do seu país, inspirado na obra de Maria Lamas.

Que mulheres tem este país, 70 anos depois daquele olhar de Maria Lamas?

O País é o mesmo, mas as mulheres e os contextos certamente que não.

O trabalho de pesquisa levado a cabo pela realizadora contou com a colaboração da jornalista Sofia Branco, que tem muito trabalho desenvolvido nas áreas dos direitos humanos, direitos das mulheres, direitos das crianças, direitos das minorias, cooperação e desenvolvimento.

São catorze as mulheres do País de Raquel Freire: Adelaide Costa, Alice Cunha, Ângela Pica, Clara Queiroz, Leonor Freitas, Lúcia Vaz, Mynda Guevara, Maria Inácia Flores e Perpétua Flores, Maria José Neto, Maria João Pereira, Maria do Mar Pereira, Márcia Sousa e Toya Prudencio. Segundo a cineasta, «Cada uma destas mulheres é um país em si».

Também nós estamos lá, personificadas pela Maria João Pereira, uma mulher extraordinária que ultrapassa todos os dias as «desigualdades e dificuldades» deste território de vales e montanhas, de mar e de serra, de passeios estreitos e de gente que estaciona no local reservado a pessoas como ela. É a partir de uma cadeira de rodas que Maria João vive a hostilidade do território e ganha asas com o grupo Dançando com a Diferença. Foi ela a mulher escolhida pela Raquel Freire para contar um bocadinho de nós, mulheres da Região, na Região. No filme, a Maria João diz que nasceu para pertencer às minorias e que, quando dança, sente o peso da responsabilidade de ser a única mulher em Portugal a transcender a cadeira de rodas através da dança.

Percebe-se que este foi um filme difícil, como o será para uma grande parte dos realizadores em Portugal, mas principalmente para as mulheres realizadoras. Apesar de Raquel Freire ter concorrido, o Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) não apoiou a realização deste filme. Mas o filme fez-se na mesma; com o apoio da Comissão para a Igualdade de Género (CIG), com metade do orçamento que o ICA costuma atribuir à produção de documentários.

«Mulheres do Meu País» é um filme nómada. Há um ano que visita as regiões das mulheres que conta. Chegou a vez de visitar a nossa. Pela primeira vez, e no âmbito da Semana das Mulheres organizada pela Câmara Municipal do Funchal, o filme será exibido amanhã, dia 8 de março, no Teatro Baltazar Dias. Antes, pelas 17 horas, teremos a oportunidade de ouvir e participar numa conversa que contará com a realizadora, Raquel Freire, com a nossa protagonista, Maria João Pereira, com o curador do Screenings Funchal, Pedro Pão e com a vereadora Madalena Nunes.

Tanto Maria Lamas quanto Raquel Freire são mulheres a invocar no Dia Internacional das Mulheres; pela forma como conduziram e conduzem as suas vidas, pela forma como desafiaram e desafiam o conselho da Condessa de Gencé (1872-1965), célebre autora de manuais de uma certa civilidade e etiqueta muito em voga no Estado Novo: «uma menina não deve ter opinião política; nesse assunto deve insinuar a sua ignorância.»

Maria Lamas e Raquel Freire são mulheres de março porque contam as «mulheres em Portugal que não cabem em Portugal», contam as mulheres que não desistem e fazem o nosso País – e a nossa Região – todos os dias.

Também nós, cada uma de nós, na sua circunstância, tem a tarefa de assumir a sua Região; de lembrar que, como defende Raquel Freire, cada mulher é um país e que cada uma das mulheres retratadas neste filme somos nós. Que «a força e a capacidade de olhar o mundo à volta, de o compreender e de o transformar» que a realizadora viu naquelas 14 mulheres é, também, a nossa força. E que, como diz a determinada altura Clara Queiroz (uma das protagonistas), «Não vamos inventar a roda, porque já foi inventada. Mas vamos usá-la de uma maneira diferente.»

Post Scriptum:

Após cinco meses de impasse quanto à direção clínica, e numa altura em que a máquina da saúde tem de estar bem afinada, uma sugestão conciliadora:

Pedro Ramos certamente seria um nome consensual para a Direção Clínica. E Mário Pereira como Secretário Regional da Saúde. A César o que é de César.

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